Sociedade | 04-11-2025 10:00

A vida depois do AVC faz-se a um ritmo novo e ganha com a partilha  

A vida depois do AVC faz-se a um ritmo novo e ganha com a partilha  
As sobreviventes de AVC, Filipa Castelo, Laura Boa Vida, Sónia Luís e Ana Cristina com a terapeuta da fala, Sara Fidalgo (segunda à direita) - foto O MIRANTE

Quando as veias entopem ou sangram no cérebro e se escapa à morte, nasce-se para uma nova vida. Assim aconteceu com Sónia Luís, que teve de reaprender a comer, a falar, a segurar uma caneta. Ter uma rede de apoio e estar bem informado são passos importantes para as melhoras. E é isso que o recém-criado Grupo de Ajuda Mútua de Santarém vem trazer aos sobreviventes.

Sónia Luís, natural de Santarém, era uma profissional exigente, com formação académica em várias áreas. Era muito regrada na alimentação, nunca fumou, nem bebia café ou álcool. “Viciada em trabalho” tinha no stress o único excesso. Aos 45 anos, sem pertencer a grupos de risco, sofreu o primeiro AVC enquanto dormia, sozinha em casa. Ser rigorosa com os horários acabou por lhe salvar a vida. Tinha um compromisso para essa manhã e a ausência levantou suspeitas. Quando foi encontrada, estava inconsciente. “Nós [sobreviventes] não temos noção do que nos aconteceu. Acordamos num mundo paralelo, não sabemos bem o que estamos aqui a fazer”, afirma.
O internamento revelou um problema cardíaco que fazia com que a passagem do sangue formasse bolhas de ar no cérebro. Foi operada ao coração, mas na recuperação sofreu um segundo AVC, desta vez uma trombose cerebral. Perdeu parte da visão do olho direito e alguma força no lado esquerdo do corpo. Apesar de tudo, quis regressar rapidamente ao trabalho. “Achava que estava pronta”, recorda. Mas a incapacidade começou a revelar-se: ler tornava-se difícil, interpretar textos era um desafio e a mão, sem forças, deixava cair objectos. Ainda assim, Sónia ria e desvalorizava. Continuou em reabilitação, mas sem desacelerar. “Nós somos animais de hábitos. Prometi aos médicos que ia descansar e voltei a fazer tudo igual”, conta.
Em Outubro de 2023, o terceiro AVC apanhou-a no trabalho. Lembra-se apenas do som das pessoas a rir. Depois, o vazio. Acordou nos cuidados intensivos sem saber quem era. “O meu cérebro fez um reset. Não me lembro da infância, nem de mim. Fui abençoada: não tenho saudades da Sónia que fui, porque não me lembro dela. Não sofro como alguns sobreviventes de AVC sofrem, porque se conseguem comparar”. À terceira, o AVC deixou sequelas profundas. Teve de reaprender tudo: falar, comer, usar os talheres, escrever o nome. “A primeira vez que me deram uma caneta eu sabia o que era, mas não como se usava”. Logo ela, que antes era dona de um vasto léxico, palestrava e não falhava uma vírgula.
No dia em que lhe disseram que teria alta hospitalar quando soubesse comer de faca e garfo, contar e dizer por ordem os meses do ano, ganhou um objectivo. “Aquilo nunca mais sai das nossas cabeças. Pedi à minha mãe para me levar um prato de plástico e talheres e passava as noites a tentar aprender”. Para decorar os meses serviu-se dos nós das mãos e para contar dos dedos. Já em casa, onde não reconhecia nada do que ali via, disse aos pais que queria morar sozinha, como dantes, e empenhou-se em “arranjar estratégias” como andar de luvas para não se queimar a cozinhar ou cortar-se enquanto descascava a fruta.

GAM: um espaço onde se reaprende a viver
Sónia Luís sofreu um quarto AVC e está hoje reformada por invalidez. Perdeu muito, mas não a empatia e a facilidade com que consegue aligeirar o que lhe aconteceu, o que é, como diz, “importante para outros doentes”. Não é por isso de estranhar que lhe tenham lançado o desafio para ser um dos rostos dinamizadores do Grupo de Ajuda Mútua (GAM) de Santarém para sobreviventes de AVC, que está a funcionar desde 4 de Outubro, na Liga dos Amigos do Hospital de Santarém. Os GAM, já disponíveis em mais de 20 localidades, são uma “forma de actuação para responder aos problemas e questões de quem sofreu um AVC, sentindo o conforto de não serem os únicos a lutar”, destaca a associação Portugal AVC. Neste novo espaço de partilha em Santarém, que surge com o apoio da Unidade Local de Saúde (ULS) Lezíria, do município, da Liga dos Amigos do Hospital de Santarém e da clínica Arbórea, pretende-se também melhorar a capacidade de enfrentar situações difíceis, ajudar os sobreviventes a sair do isolamento, aumentar a autoestima e recolher ideias para facilitar a integração e partilhar informações sobre os seus direitos. Os encontros vão acontecer no primeiro sábado de cada mês e contar com a participação de profissionais de diversas áreas.
“Muitas destas pessoas, iguais a mim, saem do internamento e vão directamente para casa e os cuidadores não sabem o que fazer”, sublinha Sónia Luís, explicando que apesar das suas limitações espera conseguir ajudar outros, transmitindo conhecimentos que reteve nas terapias que frequentou, nomeadamente a importância de um sobrevivente de AVC se apresentar como tal quando vai a um serviço público, a um supermercado, a um restaurante, ao invés de se esconder. “Apresentem-se às pessoas dizendo: eu tive um AVC”, é fundamental, defende Sara Fidalgo, terapeuta da fala no Hospital de Santarém e dinamizadora do GAM. “A pessoa que está do outro lado não sabe” o que se passa, não sabe da afasia, dos problemas de memória, locomoção ou outras sequelas que o AVC possa ter deixado e com as quais é preciso lidar com respeito e paciência.
A recuperação de Sónia Luís contou com a ajuda dos pais, idosos, que “tiveram de educar uma filha adulta de novo”. Sónia ri-se ao contar que, no início, chegou a tomar banho vestida porque não sabia que tinha de tirar a roupa. Hoje destaca a importância dos familiares na recuperação de um sobrevivente de AVC. Também estes, vinca, têm lugar no GAM. Os familiares de um sobrevivente de AVC, completa a terapeuta Sara Fidalgo, “sentem que aquela pessoa já não é a mesma e não sabem, muitas vezes, lidar com isso. Não sabem se estão a fazer bem em deixar varrer, porque está a varrer mal. Mas deixem-na varrer, as pessoas têm de se sentir úteis”, diz como exemplo.

“Só me dói não poder regressar ao trabalho”

Depois de sobreviver a quatro AVC e de lhe ter sido depois diagnosticada uma doença oncológica, Sónia Luís avança como pode, ao seu ritmo. A morte não a assusta. A vida é, como diz, só uma passagem e o corpo é matéria, que pode servir de estudo para outros. Assim será com o seu, que doou à ciência. Com a mesma lucidez com que fala do fim, fala da vida. “Não tenho saudades do que perdi. Só me dói não poder regressar ao trabalho porque eu só sabia trabalhar”. Aos 50 anos, ainda vive em Santarém, perto dos pais. Na garagem mantém a mota, uma Harley-Davidson, de que tanto gostava, como lhe contam. De vez em quando vai lá, dar à chave, só para ficar a ouvir o barulho do motor. Continua a rir-se de si mesma e a aprender todos os dias. Diz que se sente tranquila, mesmo diante do incerto. “A minha cabeça é como um novelo de lã com muitas pontas. Já não consigo puxar a linha de antes, mas aprendi a viver com o que tenho”, afirma.

Três portugueses sofrem um AVC a cada hora

O AVC é uma das principais causas de morte e incapacidade em Portugal, com cerca de 25 mil pessoas afectadas por ano. Estima-se que, por hora, três portugueses sejam vítimas de AVC. O dia para aumentar a consciencialização para essa realidade assinala-se a 29 de Outubro. A intervenção rápida é fundamental para minimizar danos. Mas para isso é preciso saber identificar sinais de alerta. Os chamados três F: o desvio da face; a dificuldade em falar; e alterações de sensibilidade num dos membros. “Sofrer um AVC pode acontecer a qualquer um”, adverte Sara Fidalgo, realçando que é por isso que o GAM prevê e está já a trabalhar no sentido de levar informação às escolas sobre os sinais e factores de risco, como a hipertensão, o sedentarismo, o tabagismo e o alcoolismo.
O plano de recuperação de um sobrevivente implica, geralmente, a recuperação neurológica, motora, psicossocial, funcional e de comunicação. A terapeuta Sara, que acompanha Sónia Luís desde que sofreu o terceiro AVC, costuma dizer que igual ao que se era nunca se fica. “E importa ter essa noção, que fica uma cicatriz. Por muito que as zonas vizinhas do cérebro assumam as funções que a área lesada fazia, nunca é igual. E tem de haver um luto para se ganhar vontade, força e empenho para melhorar. É interiorizar para poder avançar”.

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