Asterix e os acidentes de trabalho
Só num país de terceiro mundo é que se discutem salários, tempos de trabalho e cessações de contrato de trabalho, sem que se assegure, antes de tudo o mais, que os trabalhadores têm de estar vivos e com saúde para poderem depois reivindicar o que bem entenderem.
Sou um apaixonado por banda desenhada franco-belga deste que me conheço. Fui um coleccionador furioso da revista Tintin, do Mundo de Aventuras, do “A Suivre”, etc. Nesse sentido e como não podia deixar de ser, embora tenha saudades da genialidade dos textos de Goscinny, ou do traço de Uderzo, não deixo de comprar os livros de Asterix que vão saindo. É também o meu lado de colecionador a funcionar, que vai muito para lá da análise qualitativa de cada obra em concreto.
Sim, já comprei e li o novo livro de Asterix na Lusitânia, o qual, em minha opinião, não envergonharia Goscinny.
Em Asterix e Obelix, Goscinny utilizava o humor como sátira cultural, alicerçada muitas vezes sobre uma caricatura nacional. Explorava as características típicas - reais ou imaginárias - de um determinado grupo cultural ou nacional, articulando jogos de linguagem, exageros visuais e anacronismos modernos, tecendo um universo satírico onde as identidades nacionais são amplificadas de forma humorística.
Visavam-se hábitos, clichés e comportamentos colectivos. Tal como uma caricatura exagera os traços faciais, Goscinny exagerava, ironicamente, as características culturais de cada povo.
Os novos autores prosseguiram com esta abordagem. Assim sendo, nas aventuras na Lusitânia, apresenta-se uma Amália a cantar, um Ronaldo a jogar, vendem-se pasteis de natas e os “lusos” iniciam todas as frases pelo vocativo “Eh pá”, interjeição que, aliás, não consta da versão original em francês.
Todavia, também se desenham trabalhadores a tapar buracos numa estrada… Ah, e surge uma outra vítima de um acidente de trabalho numa pedreira! Pois, nem mais, nem menos. Significa isso, simplesmente que, aos olhos de quem nos observa do exterior, a temática dos acidentes de trabalho constitui um elemento caracterizador do Portugal actual.
Surpreendidos? Eu não. Analisem-se as discussões sobre as alterações ao Código do Trabalho. Governo, associações patronais e sindicais, perdem-se em argumentos sobre a bondade desta ou daquela alteração - com mais ou menos razões de parte a parte - e até já está agendada uma greve geral.
No entanto, nem governo, nem patrões, nem – imagine-se! – sindicatos, se preocuparam, mesmo que muito ao de leve, nalgum momento, com os trabalhadores que morrem a trabalhar, que ficam inválidos, ou com a legislação de segurança e saúde no trabalho, muita dela já decrépita e ultrapassada.
Só num país de terceiro mundo é que se discutem salários, tempos de trabalho e cessações de contrato de trabalho, sem que se assegure, antes de tudo o mais, que os trabalhadores têm de estar vivos e com saúde para poderem depois reivindicar o que bem entenderem!
Sindicatos, patrões e governo, bem que se podem cobrir de alcatrão, visto que continuam a permitir que se morra a trabalhar em Portugal sem qualquer pingo de vergonha.
Por outro lado, silentes, assobiam para o ar, aguardando também que ninguém se lembre de actualizar as coimas laborais, que se mantêm inalteradas desde 2009.
Os sindicatos evidenciariam “profonde sagesse” se permitissem uma maior flexibilização laboral, exigindo como contrapartidas, i) quer a revisão total da legislação de segurança e saúde, ii) quer a revisão das coimas laborais. Recorde-se que as coimas laborais foram incompetentemente indexadas pelo Dr. Vieira da Silva, às Unidades de Conta - métrica de valor utilizada para calcular o montante de taxas processuais em Portugal.
Dir-se-á que com Asterix na Lusitânia, Portugal conseguiu, finalmente, projectar-se internacionalmente à custa de quem morre a trabalhar. Que bom!
P.N.Pimenta Braz


