Sociedade | 02-12-2025 18:00

“Quando uma criança chega à nossa casa é porque tudo falhou”

“Quando uma criança chega à nossa casa é porque tudo falhou”
Josiane Tomé é coordenadora da Casa de Acolhimento da Fundação CEBI em Alverca - foto O MIRANTE

A Casa de Acolhimento Residencial da Fundação CEBI, em Alverca, já apoiou mais de 600 crianças em risco nas últimas três décadas. O Dia Internacional dos Direitos das Crianças é assinalado a 20 de Novembro. Uma data que sinaliza a dura realidade de muitas crianças ainda não terem assegurados os seus direitos.

A Casa de Acolhimento Residencial da Fundação CEBI, em Alverca do Ribatejo, assinala este ano 30 anos de existência e já protegeu e integrou na sociedade mais de 600 crianças, algumas delas já adultas com carreiras de sucesso. A 20 de Novembro celebra-se o Dia Internacional dos Direitos das Crianças e para Josiane Tomé, coordenadora da casa, ainda há um longo caminho a percorrer para que os direitos das crianças sejam protegidos.
Muito foi feito nestas três décadas, mas a prevenção ainda é algo que precisa de ser reforçado e incentivado, defende a coordenadora de uma casa que tem garantido segurança, cuidados e ajudado a construir projectos de vida para centenas de crianças.
No balanço que faz da protecção infantil em Portugal, Josiane Tomé defende que a luta pelos direitos das crianças não pode passar só por frases bonitas. Tem de ser acção no terreno. Apesar de reconhecer que a legislação é “muito boa” e que existem medidas governamentais relevantes, identifica o principal problema: a prevenção continua a ser insuficiente. “Fala-se pouco de prevenção. Fala-se pouco na intervenção imediata e próxima das famílias. Se chegamos ao acolhimento é porque falhámos antes. As primeiras linhas, as escolas, os centros de saúde, as equipas de proximidade, precisam de ser reforçadas”, defende.
No âmbito do Dia Internacional dos Direitos das Crianças, a responsável lembra que numa sociedade justa ninguém deve ficar para trás, muito menos as crianças. “As crianças que hoje ajudamos serão os adultos de amanhã, os próximos pais, os próximos agentes de mudança. Numa sociedade justa, ninguém deve ficar para trás, muito menos quem é frágil e vulnerável”, defende.

Maltratadas, abandonadas e agredidas
Ao longo destas três décadas passaram pela casa de acolhimento da CEBI 604 crianças em situação de risco, negligência, maus-tratos físicos e psicológicos, abandono, violência doméstica ou contextos familiares incapacitantes. “As tipologias são diversas. Desde crianças maltratadas fisicamente e psicologicamente até situações graves de negligência. Algumas foram abandonadas mas não são a maioria”, explica Josiane Tomé.
Hoje a casa acolhe 30 crianças em simultâneo, que têm entre 1 e 12 anos. A média de idades, avisa a responsável, tem vindo a baixar. “Estamos com uma média de quatro anos. Temos recebido crianças muito pequenas, algumas chegam com apenas três dias de vida”, lamenta. Com uma equipa multidisciplinar de 20 profissionais, entre cuidadores, psicólogos, assistentes sociais, educadores e técnicos especializados, a intervenção começa no momento da entrada. “Quando uma criança chega é porque tudo o resto falhou. Nós somos a última linha. É uma fase muito sensível, porque é quando se constroem as rotinas e o sentimento de segurança”, explica. Reparar o trauma é o trabalho mais desafiante, técnico e prolongado.
“Há crianças que ficam um mês e outras que ficam três ou quatro anos, porque é preciso validar se a família biológica reúne condições para o regresso. Quando não existe essa possibilidade, então estuda-se outro projecto de vida, como a adopção”, refere. A casa vive de fundos da Segurança Social, da própria fundação e de parceiros locais, voluntários, mecenas e empresas. “Já tivemos empresas que vieram montar móveis, pessoas que doaram equipamentos e recentemente um mecenas individual financiou a renovação completa da sala de actividades. Para as crianças cada gesto faz diferença”, conclui a responsável.

A família continua a ser o destino da maioria

Segundo os responsáveis, 84% das crianças que passaram pela casa tiveram como destino final um ambiente familiar, seja o regresso à família biológica, integração na família alargada ou acolhimento familiar. Apenas 20% seguiram para adopção. “A casa não é um hotel nem uma solução final. É uma casa temporária. Desde o primeiro dia começamos a preparar a saída da criança e queremos que tenha um projecto de vida estável e sempre que possível em família”, refere. A ligação emocional construída ao longo da vida permanece entre as crianças que por ali passaram. “Muitas voltam cá já adultas e algumas convidaram-nos para casamentos, outros vieram trabalhar para a própria fundação. Este lugar foi uma casa para eles e por isso faz parte da sua história”, acrescenta. Apesar de tudo, nem todas as histórias têm finais felizes. Josiane Tomé recorda um caso marcante. “Há muitos anos, recebemos uma chamada de um estabelecimento prisional. Era um jovem que tinha estado aqui em criança. Disseram-nos que, na cela, ele contou que a casa de acolhimento tinha sido a experiência mais familiar que teve na vida. Foi duro perceber o desfecho mas também mostrou o impacto que tivemos”, lamenta.

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