Sociedade | 25-12-2025 12:00

“Natal do Recomeço” dá dignidade e conforto a quem é sem abrigo em Santarém

“Natal do Recomeço” dá dignidade e conforto a quem é sem abrigo em Santarém

A iniciativa da Cruz Vermelha juntou apoio social, cuidados básicos e histórias de superação de quem vive em situação de sem-abrigo no concelho de Santarém.

Na Casa do Campino, a manhã do dia 12 de Dezembro foi diferente para dezenas de pessoas que vivem em situação de sem-abrigo em Santarém. A iniciativa “Natal do Recomeço”, promovida pela Cruz Vermelha de Santarém, quis ir além e devolver algo que muitas vezes se perde primeiro: dignidade, cuidado e atenção. O evento contou com o apoio de várias entidades locais e juntou num mesmo espaço respostas essenciais como roupa, cortes de cabelo e barba, sessões de estética, informação sobre empregos com o IEFP, apoio alimentar e momentos de convívio. Actualmente, estima-se que existam cerca de 75 pessoas em situação de sem-abrigo em Santarém, um número que inclui não apenas quem dorme na rua, mas também quem vive em casas abandonadas ou degradadas, sem condições básicas.
António Coutinho tem 62 anos e fez anos no próprio dia da iniciativa. Carrega desde cedo um percurso marcado pela precariedade e trabalho duro, tendo durante vários anos vivido numa casa degradada em Santarém, sem água canalizada nem electricidade. O edifício acabaria por ser considerado inabitável pela Protecção Civil, mas sem meios ou alternativa habitacional, permaneceu no local. Trabalhou desde muito novo, tendo aos cinco anos pedido esmola com a mãe e aos 13 entrado para as obras. Um ambiente que descreve como duro e pouco digno para uma criança, onde o consumo de álcool e tabaco fazia parte do quotidiano. Ao longo da vida fez todo o tipo de trabalhos e, apesar de o trabalho nunca o ter assustado, “a saúde já começa a falhar”, sentindo esse peso na procura de emprego. Há cerca de dois meses, decidiu pedir ajuda à Cruz Vermelha de Santarém tendo, através da associação, surgido a possibilidade de integrar o programa Housing First, que lhe proporcionou uma casa renovada, que partilha com outro homem. Está a ser acompanhado e tenta reorganizar a vida, mas continua sozinho na sua luta, pois, apesar de ter família, já não tem contacto ou o afecto deles.

Viver um dia de cada vez
Rui Simões tem 30 anos e uma história diferente, mas igualmente marcada pela amargura de ficar sem abrigo. Natural de Santarém, trabalhava como ajudante de electricista e conciliava o emprego com os estudos em informática e mecatrónica industrial. Tudo mudou após um surto psicótico, em que gastou todo o dinheiro que tinha em roupa e, sem conseguir pagar a renda ou família que o acolhesse, passou a viver na rua. “É constrangedor”, e explica como é passar de uma vida normal para uma situação de desespero, admitindo que a solidão é o que mais lhe custa. Tem tentado procurar emprego, mas sente que os seus problemas de saúde mental ainda não lhe permitem dar esse passo, estando a aguardar consultas de acompanhamento psicológico. Apesar de tudo, afirma que a Cruz Vermelha tem sido um apoio constante a tentar encontrar uma solução habitacional. Rui Simões vive com cautela, sem grandes projecções no futuro e confessa que esta fase da vida lhe trouxe aprendizagens duras, salientando que “há oportunidades que não voltam e é preciso agarrá-las quando surgem”. A esperança, no seu caso, é silenciosa, diária e construída passo a passo.

Uma vida inteira de trabalho até à queda
Abílio Ferreira tem 74 anos e viveu durante cerca de 20 anos numa casa abandonada, sem condições. Uma realidade dura que contrasta com o passado que recorda com orgulho, afirmando que “sempre fui inteligente, mas tive pouca sorte na vida”. Foi empresário da construção civil durante 50 anos e participou na construção de vivendas, prédios, casas e igrejas, tendo uma vida estável até ao ano 2000, quando tudo ruiu. “Caí eu e caiu tudo”, resume, referindo-se ao colapso do negócio que o deixou sem estrutura financeira. Além da ajuda da Cruz Vermelha não tem apoios próximos, tendo a sua situação sido agravada por um AVC recente. Contudo, esse episódio acabou também por abrir portas a mais acompanhamento e actualmente vive num quarto arrendado, pago com a pequena reforma que recebe, embora admita que o aumento do custo de vida torna cada mês mais difícil. “Agora não estou mal, mas tenho esperança de ficar ainda melhor”, diz, acreditando que este pode ser apenas mais um recomeço.

António Coutinho tem 62 anos e encontrou casa graças à Cruz Vermelha - foto O MIRANTE
Rui Simões admite que a solidão é a pior parte de viver na rua - foto O MIRANTE
Abílio Ferreira viveu durante 20 anos numa casa abandonada, apesar de já ter tido a sua própria empresa - foto O MIRANTE

Cruz Vermelha apoia cerca de 700 famílias carenciadas

Segundo Mónica Peralta, coordenadora da acção social da Cruz Vermelha de Santarém, a equipa de apenas cinco pessoas que coordena acompanha cerca de 30 pessoas sem-abrigo e 700 famílias carenciadas, o que corresponde a cerca de 1.800 pessoas. Entre as respostas em curso destaca-se o projecto Housing First, que assenta na disponibilização de habitação como ponto de partida para a reconstrução do percurso de vida de pessoas sem-abrigo, que dispõe actualmente de cinco habitações, com 17 pessoas já integradas. A par da resposta directa, o trabalho de prevenção assume um papel central em evitar que as situações evoluam para a perda de habitação. Este acompanhamento inclui mediação familiar, soluções habitacionais temporárias e apoio social continuado, um trabalho muitas vezes invisível, mas essencial.
Numa próxima edição de O MIRANTE faremos um balanço dos sem-abrigo que existem nos concelhos da área da nossa influência.

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