Sociedade | 14-06-2022 12:00

Sentir dor na menstruação pode ser incapacitante

Madalena Nogueira é directora do Serviço de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital Distrital de Santarém. Tânia Ramos. Vera Lúcia

Para Tânia Silva o período da menstruação era “constrangedor” e “extremamente doloroso”. Vera Lúcia não conseguia ir trabalhar mas o motivo não era tido como válido. Para mulheres como estas a implementação da licença menstrual, chumbada no Parlamento, teria sido uma vitória. A directora do serviço de Ginecologia do Hospital de Santarém deixa um alerta: sentir dores incapacitantes durante a menstruação pode estar associado a uma patologia.

Tânia Silva ouviu, durante anos, dizer que havia mulheres que como a sua tia ficavam de cama por causa da menstruação. Talvez por isso quando na adolescência menstruou pela primeira vez tenha achado normal todo aquele sofrimento. A perda de sangue e as dores pélvicas eram tão intensas que a impossibilitavam de andar. O mais comum era ser levada da escola, por alguém, para uma unidade de saúde.
Com o passar dos anos, e já depois de lhe ter sido diagnosticado um mioma no útero e de ter feito várias terapêuticas, as dores não abrandaram. Nem as hemorragias intensas que a obrigavam a usar fraldas durante os dias da menstruação e que por vezes não eram suficientes. “Era muito constrangedor. Um dia um chefe viu-me naquele estado e mandou-me para casa”. Noutros a operária fabril, residente no Porto Alto, concelho de Benavente, nem conseguia sair da cama. “Pelo menos um dia por mês tinha que abandonar ou faltar ao trabalho e isso prejudicava-me porque ninguém compreendia, nem chefes mulheres que deviam entender melhor”.
Mas para isso, continua, era necessário a sociedade entender que “os organismos das mulheres não são todos iguais” e que para umas a menstruação “não incomoda” mas para outras, como foi o seu caso, “é extremamente dolorosa”. Seria por isso importante, defende, que a licença menstrual proposta pelo PAN, que acabou chumbada no Parlamento, com os votos contra do PS, PSD, Iniciativa Liberal e Chega tivesse ido avante. “Talvez parassem de nos dizer: toma um remédio que isso passa. Porque no meu caso, e em casos como o meu, não passa”.
As dores menstruais sempre foram vistas pela sociedade como algo normal e é de facto habitual as mulheres sentirem algum desconforto e dor pélvica, já que para se dar a expulsão do sangue “existem contracções”, explica a directora do serviço de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital Distrital de Santarém. O que não é normal, prossegue, é que essas dores sejam severas e limitem a mulher no seu quotidiano. Nestes casos, que afectam um grupo de mulheres, podem ainda surgir cefaleias, vómitos, alterações de humor e hemorragias excessivas associadas a alguma patologia.
De entre as situações mais complicadas, a mais comum é a endometriose, uma doença que afecta uma em cada dez mulheres, caracterizada pela presença do endométrio (tecido que forra a parte de dentro do útero) fora da cavidade uterina, nomeadamente em outros órgãos do abdómen mas também noutras partes do corpo. “Já tive situações de endometriose pulmonar que levam a mulher a ter vómitos de sangue durante a menstruação e de endometriose no palato, que faziam com que essa mulher sentisse sabor a sangue ou a ferro, como dizia, na boca”, explica, sublinhando que dependendo do local pode causar mais ou menos dor e hemorragia.
A médica refere também que quantificar a dor nunca será possível porque “não se consegue medir a dor de outra pessoa” e, além disso, o que para uma mulher “é dor para outra pode não ser”. Quando é passada uma baixa médica ou uma terapêutica é porque se acredita na dor que a pessoa diz estar a sentir. Ainda sobre o tratamento da dor, Madalena Nogueira refere que em muitos casos os fármacos são capazes de fazer face ao problema, mas que “algumas [dores menstruais] não se resolvem com terapêutica”.

“Quando dizia o motivo não acreditavam em mim”
Vera Lúcia pertence ao tal grupo de mulheres – que não é possível quantificar – que sofrem “horrores com a menstruação”, desde os 12 ou 13 anos. Dos profissionais de saúde sempre teve compreensão, já no trabalho a situação não era vista com bons olhos. “Nos piores dias ficava deitada no chão, agarrada à barriga e no escuro porque só assim me acalmava minimamente”, conta a operária fabril, natural de Benavente.
A auto-medicação com paracetamol ou iboprufeno era prática recorrente nesta fase do seu ciclo menstrual. E o intuito era sempre o mesmo: minorar a dor para conseguir ir trabalhar, o que nem sempre acontecia. “Faltei muitas vezes ao trabalho, às vezes era mais do que um dia por mês. Quando dizia o motivo não era compreendida, sentia que não acreditavam em mim”, diz, referindo-se aos tempos em que trabalhava no campo explicando que as dores eram mais fortes do que as que sente de há cinco anos para cá, desde que lhe foi colocado um dispositivo intrauterino (DIU).
Aos 40 anos Vera Lúcia assume que ainda há dias em que a dor atrapalha no trabalho, mas o “medo de ser despedida” é mais forte. “Fazem leis para tanta coisa e esta que fazia todo o sentido, porque é um direito das mulheres que está em causa, não avança”, queixa-se.

Direito ou gatilho para a desigualdade?

Nos anos 80 em Portugal as mulheres com dores menstruais incapacitantes tinham assegurada uma licença não remunerada até dois dias, que terminou com a revisão do Código do Trabalho, em 2009, que definiu um regime limitativo de faltas. Trazer de volta esta licença, ainda que em moldes diferentes, poderia reavivar o que uns podem considerar um direito e outros uma desigualdade ou até aproveitamento. A médica Madalena Nogueira, numa “visão muito pessoal”, encara a situação como “um pau de dois bicos” – por um lado porque “é inegável que há mulheres com dores menstruais incapacitantes”, mas, por outro, poderia haver mulheres a aproveitarem-se indevidamente dessa licença.
Além disso, afirma, poderia ser vista como mais um factor para a não contratação de mulheres, como o é, lamentavelmente, a licença de amamentação e a própria gravidez. “A licença menstrual faria sentido se a literacia da nossa população fosse mais elevada”, diz a médica, acrescentando que desconfia que com esta medida se estaria a “abrir uma caixa de pandora sem controlo”.
A proposta apresentada pela deputada do PAN, Inês Sousa Real, visava a “possibilidade de atribuição de uma licença para pessoas que sofrem de dores incapacitantes durante o período menstrual” que podia ir até três dias de ausência no trabalho por mês “sem perda de direitos, salvo quanto à retribuição”- ao contrário da medida aprovada por Espanha. Para se beneficiar desta licença seria obrigatória a apresentação de uma declaração de uma unidade de saúde ou atestado médico.

Mais Notícias

    A carregar...
    Logo: Mirante TV
    mais vídeos
    mais fotogalerias

    Edição Semanal

    Edição nº 1661
    24-04-2024
    Capa Vale Tejo
    Edição nº 1661
    24-04-2024
    Capa Lezíria/Médio Tejo