"Os meus versos cantam a Chamusca e as suas gentes"

"Os meus versos cantam a Chamusca e as suas gentes"
TEXTOS QUE FIZERAM HISTÓRIA

Poemas de Maria Manuel Cid são dos mais cantados por fadistas. Entrevista publicada em Dezembro de 1989.

"Guardei meus sonhos dos olhos alheios,/ Enterrei em mim os loucos devaneios/ De criar impérios e amar riqueza; /E voando no espaço sem traçar caminhos,/ Pude rir-me dos pobres adivinhos/ Que a um destino me diziam presa. " versos do poema "Sem Abrir Caminhos", de Maria Manuel Cid (29/02/1922 – 08/06/1994)

Um dos seus livros tem por título "O Meu Nome é Ninguém" porquê ninguém?
A minha poesia não é realmente aquilo que eu gostaria que fosse. Na poesia não sou ninguém. Daí esse título.

Com quantos anos começou a escrever poemas?
Aos treze anos.

Tem muitos artistas que cantam os seus versos. Qual foi o primeiro?
Foi o Carlos Guedes de Amorim. Depois seguiram-se os outros todos. O Carlos tinha para aí uns catorze anos quando começou a cantar os meus versos. Eu escrevi durante muitos anos e nunca mostrei a ninguém. Só mais tarde é que o meu marido começou a apanhar uns versos e a divulgá-los junto dos amigos. Nessa altura vinham muitos artistas à nossa casa. Claro que eles começaram a gostar e a pedir-nos mais para cantar.

Foi assim com o Carlos Guedes de Amorim?
Com o Carlos foi diferente. Eu era muito amiga da mãe e ele vinha para aqui desde pequenino. Como ele gostava de cantar, eu fui-lhe ensinando música. Foi mais ou menos assim que ele começou.

O que é feito dos versos dos seus treze anos?
Não sei, perdi-os. Isso acontecia-me frequentemente. Mais tarde alguns poemas foram encontrados em gavetas. Eu tenho o hábito de escrever em qualquer lado. Em caixas de fósforos, pequenos papéis, etc. A minha neta Catarina é que os apanha e os passa à máquina.

Nunca rasgou poemas seus?
Aconteceu muitas vezes. Ao fim de algum tempo rasgava aqueles de que menos gostava.

Nunca experimentou outros géneros literários?
Já fiz uma peça de teatro e tenho aí mais um ou dois trabalhos mas nunca foram publicados.

E a peça foi?
Não, nunca chegou a ser editada.

Quantos anos tem esse texto?
Tem vinte e dois ou vinte e três anos. Foi apresentada aqui na Chamusca, nessa altura.

Quem foi o encenador?
Fui eu, com a ajuda dos artistas da terra. Na altura havia muitos «jeitosos» do teatro. Representámos aqui e depois fomos a Alcanena.

Que recordações guarda da sua infância?
Eu era uma criança muito introvertida. Era uma pessoa que falava pouco. A única pessoa com quem eu tinha mais contactos e com quem eu me abria mais era com o meu pai, talvez pela sua maneira de ser. Era um homem extremamente inteligente e tinha uma forma muito sua de educar. Deu-me sempre toda a liberdade, exigindo-me sempre toda a responsabilidade. Isso teve muita influência na minha maneira de ser. Ainda hoje sinto que a minha infância me marcou muito. Os problemas de família, todas essas coisas, que talvez eu sentisse mais do que as outras crianças da minha idade. Tudo isso me marcou um bocado.

Isso influenciou a sua escrita?
A tendência de escrever para o fado, talvez venha daí. De uma certa melancolia permanente que existia em mim e da necessidade de desabafar. Como não conseguia fazê-lo falando, escrevia. Foi assim que tudo começou.

E as leituras?
Eu sempre li muito, logo desde pequenina. Sempre adorei ler. Desde muito cedo comecei a ler poesia. Depois, a partir da altura em que comecei a escrever, a poesia tocava-me tão profundamente, que eu tinha medo de plagiar e deixei de o fazer tão assiduamente.

Tinha familiares que escreviam?
Ainda não falei dos meus antecedentes. O meu avô, António Seixas, pai da minha mãe, foi uma pessoa que escreveu muito. Peças de teatro, poesia, etc. O meu pai, Manuel José Cid Carvão Guimarães, era um arqueólogo, um homem interessadíssimo pelo estudo e pela pesquisa.

Já falámos do avô, do pai, do marido. Quem foi ou é a pessoa mais importante na sua vida?
Foi o meu marido. Hoje são os meus filhos. Isso é indiscutível.

Uma grande maioria dos seus poemas são versos de amor. O amor comandou sempre a sua vida?
Sim, mais do que a cabeça.

Um dos seus melhores poemas, na nossa opinião, é "As vozes do silêncio".Que idade tem este trabalho? Conte-nos lá um pouco a história dos seus poemas.
Sabe, a natureza também me toca muito. Há um sentimento de ternura que me liga à natureza e especialmente à paisagem da minha terra e do Ribatejo. Digamos que, para mim, do Ribatejo é a paisagem o que mais me toca. Eu não gosto da montanha, sufoca-me um bocado. Esse poema está muito ligado à minha maneira de ser; aos meus sentimentos. Esse poema fala um pouco daquilo que eu gostava que tivesse acontecido e que não aconteceu.

"Na cama de folhagem amor aconteceu/ E as vozes do silêncio passaram devagar!.Há quanto tempo o escreveu?
Doze anos, talvez!

Quer dizer com isso, que escreveu os seus melhores poemas já depois dos 50 anos?
Talvez. Pelo menos com mais maturidade. Sabe que com a idade há um apuramento da sensibilidade. Eu penso que antes disso há muita coisa que nos dispersa, temos os filhos para criar, etc. Depois há um período de paragem, que nos deixa mais tempo para pensar e conseguir definir melhor os sentimentos. Eu penso que é assim.

O oficio de poeta deveria ser a tempo inteiro?
Pois era.

Se tivesse tido essa oportunidade, hoje era uma poetisa consagrada? Ou considera-se realmente uma poetisa consagrada?
Sobre certos aspectos até sou. Julgo que sou a mais cantada em Portugal. Não em qualidade mas em quantidade. Que gostaria de chegar mais além, isso não escondo.

Quantos poemas é que guarda na gaveta?
Devo ter muito coisa. De vez em quando escrevo por aí em papéis, e a minha neta é que os guarda e passa depois os poemas à máquina.

São cem, duzentos... ?
Ao todo, tenho muitos mais. Mas há sempre aqueles poemas que são muito pessoais, que gosto pouco de divulgar. Fujo sempre de os dar aos fadistas. São tão pessoais que não dá para os entregar a outras pessoas.

E se lhe pedissem agora todos os versos para publicar em livro. Continuaria a negar esses mais íntimos?
Sim. Alguns sim.

Mas está preparada para que um dia os seus familiares, se a senhora não o fizer antes, venham a publicar os seus poemas todos, mesmo aqueles a que põe certas reservas?
É uma coisa que não depende de mim. Depende daqueles que cá ficarem.

Mas gostaria de saber que eles seriam publicados?
No fundo, talvez. (Risos).

Era capaz de falar dos seus poemas um por um, recordando os momentos em que os escreveu?
Isso seria quase impossível. Mas todos têm uma história pessoal. Qualquer coisa que me tocou. Às vezes, de uma conversa nasce assunto para um poema. Um quadro do dia-a-dia, as pessoas, a vida, as paisagens... de todas essas imagens nasce a minha poesia. Lembro-me perfeitamente, que há um poema, um que é «O Maioral», que escrevi no campo ao cair da tarde. Tenho outro que escrevi quando fui um dia buscar a minha filha a uma quinta perto de Santarém. Como era um bocado cedo, parei o cano junto a uma seara de trigo ainda verde. E nasceu o poema «Verdes campos, verde vida», etc.

Esse poema é cantado?
Sim, pela Maria do Rosário Bettencourt.

Quantas vezes reescreve os seus poemas?
Nunca reescrevo um poema.

Mesmo aqueles do género da "Anita", que José Cid canta?
A «Anita» foi feito, como se costuma dizer, em cima do joelho, aqui a brincar, com o José Cid à minha frente a tocar órgão.

O que está a escrever?
Escrevi hoje uma coisa que me saiu de um fôlego.

Posso ler?
Se conseguir perceber a letra!

É curioso como ao ler os seus versos, apetece logo cantá-los.
Os fadistas gostam dos meus versos por isso. Quando eu era miúda gostava muito de cantar. Mas os versos dos outros não me diziam nada. Então escrevia e ia cantando os meus versos.

Cantou muita vez em público?
Cantei duas ou três vezes no teatro, muito contrariada, aliás. De resto só em festas particulares ou em casa de amigos. O público é uma coisa que sempre me meteu medo, pelo meu feitio introvertido. Assustava-me com o público.

Entrevista feita por Joaquim António Emídio e publicada em Dezembro de 1989
(Texto editado)

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