"A Igreja será sempre o pequeno rebanho no meio da grande massa"

"A Igreja será sempre o pequeno rebanho no meio da grande massa"
TEXTOS QUE FIZERAM HISTÓRIA

António Francisco Marques (1927-1997), foi o primeiro bispo de Santarém.

A entrevista com D. António Francisco Marques decorreu no Seminário de Santarém em Outubro de 1990. O Bispo respondeu a todas as perguntas, mesmo as mais incómodas. Desafiado a comparar filmes com actores nus e os nus de Miguel Ângelo, pintados no tecto da Capela Sistina, em Roma, disse: “Uma coisa é arte, outra é erotismo. Uma coisa é admirar a beleza da natureza humana, a própria criatura, o próprio homem, a própria mulher e outra coisa é ver tudo isso do prisma erótico. São duas coisas diferentes. Por isso, quanto a mim, o erotismo não é aceitável de maneira nenhuma”.

O mundo está cada vez mais do avesso, os homens deixam-se corromper, as igrejas estão a ficar vazias. E agora Sr. Bispo?
Acaba de levantar algumas questões oportuníssimas. Eu julgo que as coisas não são tão graves como parece à primeira vista. O facto de o mundo estar em constante mudança por questões variadíssimas, tem constado mais por aquilo que não está em conformidade com o Evangelho. Uma sociedade, por um lado demasiadamente marcada no sentido centralista dos que governam, ou uma sociedade, que embora politicamente democrática, é socialmente negativa, pelo consumismo que a apanha e que a dirige, são negativas para a felicidade das pessoas.

E qual é o papel da Igreja?
A Igreja tem por missão valorizar a sociedade constituída pela pessoa humana, dando-lhe um sentido novo, que é o sentido da acção permanente de Deus em favor do próprio homem. Neste contexto, os sacerdotes têm uma missão, que é a de serem o sinal de uma igreja viva, que quer construir uma sociedade justa e fraterna, a partir da grande realidade, de que essa sociedade é constituída pelos filhos de Deus. Mas não podemos entender o padre como a única expressão da Igreja. O padre apenas exerce um ministério na Igreja, visto que a Igreja são todos os baptizados apesar de, na prática, muitos não serem essa Igreja porque não vivem em conformidade com o baptismo.

Os padres são cada vez menos. Porquê?
Na verdade, hoje, os padres são poucos para as necessidades. Devido a vivermos numa sociedade consumista e em grande parte hedonista; numa sociedade que se afirma pela via maior do poder de Estado, que foi afastando o sentido do sagrado e até lutou contra esse sentido. Nestas circunstâncias, as vocações diminuíram. Mas, digamo-lo com toda a verdade, passada a força da crise, neste momento estão a surgir as novas vocações. Não digo que sejam as necessárias, mas que nos dão uma grande esperança em relação ao futuro. Creio mesmo que nestas circunstâncias a Igreja está a conhecer-se mais e a começar a realizar de uma forma mais eficaz a sua acção. Ela será sempre, como diz o Evangelho, o pequeno rebanho no meio da grande massa, para ser, no meio do mundo, a luz, o sol, que há-de dar sentido novo a esta sociedade que nós construímos.

O tempo de crise de que falou, situa-se no período revolucionário do 25 de Abril de 1974?
Não, não me referia a esse tempo, porque isso é uma circunstância própria do país. Essa foi uma circunstância passageira que, devido ao antecedente, veio trazer uma certa desorientação. Referia-me à crise mundial, mais do que à crise localizada no nosso país. O problema das vocações é anterior ao 25 de Abril. O ressurgimento agora das vocações não tem também nada a ver com o 25 de Abril. Tem a ver sim, com a revitalização da igreja e com uma coisa que é fundamental: todos os baptizados, particularmente aqueles baptizados que se dizem crentes de verdade, começam a tomar consciência que eles também são Igreja e, como tal, têm que realizar a missão da Igreja.

Sendo a falta de padres uma das preocupações maiores da Igreja católica, não seria crucial a modificação da lei do celibato?
Eu penso que isso não viria resolver problema nenhum. O problema não está no casamento ou não casamento. O problema está na capacidade de colher a inspiração de Deus, a força do espírito, para responder às necessidades que vão surgindo no mundo, dando a resposta da Igreja, e num serviço de entrega total. Porque o celibato não é tanto a razão da disponibilidade de entrega ao povo de Deus, libertando o padre das preocupações familiares, mas é sobretudo uma opção profunda de seguir Jesus Cristo com a exigência total que a si próprio se impôs. O celibato de um padre não é uma coisa que se imponha, mas sim uma coisa que se escolhe. É uma disciplina, não vem no Evangelho, não vem como determinação do próprio Jesus Cristo. É sim uma lei dos homens, uma lei da Igreja que achou que era preferível este caminho. Mas nada impede que a lei se modifique.

Quantos padres há no nosso distrito?
Como sabe, a nossa diocese não abrange todo o distrito. A diocese de Santarém, que foi criada em 1975, abrange apenas 13 concelhos. Neste momento temos 60 padres em 104 paróquias. Deste 60, se deduzirmos aqueles que já estão incapacitados, por razões várias, constatamos que são muito poucos para exercer o ministério em favor desta comunidade que soma à volta de 300 mil pessoas. São poucos realmente para uma comunidade tão grande como é a nossa. Um outro aspecto que eu queria referir aqui, era a idade dos padres. Neste momento mais de metade dos padres têm mais de 60 anos.

Os jornais ligados à Igreja, têm no nosso Distrito pouca vitalidade e são jornais com pouca intervenção local e regional.
Um bom jornal é indispensável para a comunicação de qualquer Igreja. De facto, alguns jornais nem sempre têm a possibilidade de realizar a missão com a profundidade e a beleza desejada, precisamente derivado à falta de pessoas capazes, devido à falta de meios económicos para as despesas.

Continuemos a falar da comunicação social. Viu na última terça-feira, na "Noite de Cinema", o filme "Amante Magnífico"?
Já ouvi referências, mas não o vi. Infelizmente, ou felizmente, tenho a vida muito ocupada. Creio que, como outros acontecimentos que a nossa televisão dá em algumas ocasiões, presta um péssimo serviço à formação humana da nossa sociedade. Julgo que vincula formas de vida que não são aceitáveis para uma pessoa honesta e digna, sobretudo no que respeita ao destituir da dignidade humana, dos valores humanos. Destrói ainda um grande valor que para mim é fundamental, que é o valor da família.

É contra os filmes eróticos na televisão? Então e os filmes de guerra que passam a toda a hora? Não serão muito mais prejudiciais à formação humana da maioria dos indivíduos?
Ambos são prejudiciais. Deformam a gente nova e com uma finalidade muito concreta, reduzindo, no caso, a vida das pessoas ao aspecto sexual, quando não é aí que está o valor da pessoa humana. Por outro lado, os filmes de muita violência criam uma sociedade concreta. Eu julgo que um e outro aspecto são condenáveis. Teremos que fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que os meios de comunicação social, concretamente a televisão, se vão purificando desses males. Precisamos de um televisão culturalmente mais séria. Mais de acordo com a nossa realidade actual.

A cultura mundial, e também a nossa, está impregnada de erotismo. As grandes obras literárias são a prova disso. Miguel Ângelo andou uma série de anos a pintar figuras nuas na Capela Sistina, por exemplo.

Uma coisa é arte, outra é erotismo. Uma coisa é admirar a beleza da natureza humana, a própria criatura, o próprio homem, a própria mulher, e outra coisa é ver tudo isso do prisma erótico. São duas coisas diferentes. Por isso, quanto a mim, o erotismo não é aceitável de maneira nenhuma.

Um quadro de um nu, visto ao vivo é como na televisão. É imagem, só que não tem movimento.

O problema está na forma como se apresenta. E o que se condena é quando o que se transmite só serve para destruir a família. Reparemos muna coisa que é muito importante: nenhuma sociedade até hoje, que tenha entrado desenfreadamente pelo erotismo, sobreviveu. Todas se destruíram. Porquê? Destruíram valores fundamentais que dão valor à pessoa humana. Destruíram tudo o que faz parte essencial duma sociedade que quer progredir e que ao progredir faz a sua própria realização, a sua própria felicidade.

Nesta altura os Jeovás são muito activos em Portugal e os de maior implantação a seguir à Igreja Católica. O que pensa deles?
Não me cabe a mim julgar pessoas e instituições. Não é essa a minha função. Posso dizer simplesmente que, para lá das boas intenções das pessoas, esta instituição nasceu há relativamente pouco tempo e por razões gregárias e de interesses económicos. Por isso mesmo não tem credibilidade de base, condição indispensável a qualquer instituição dita religiosa, ao querer transmitir ou dar uma mensagem. Todo esse esforço de andar de porta em porta não habita num amor muito grande à mensagem de Deus. E para além do incómodo que causam, é a forma insistente como abordam as pessoas.

Está atento ao que se está a passar nos países de Leste?
Necessariamente, na minha posição e na minha missão de Bispo, estou atento a tudo o que acontece, não só na diocese. Tudo o que acontece no mundo tem a sua repercussão na vida de cada diocese e nas preocupações de cada Bispo. As transformações que se estão a realizar a Leste são, antes de mais, motivo de esperança. Foram sociedades que viveram ditaduras políticas e que agora vivem momentos de grande euforia. Por isso a liberdade desses povos é razão de esperança mas também de preocupação porque, rapidamente, nestas situações se passa de um extremo para o outro.

A palavra comunista continua a incomodar nos dias de hoje?
A palavra comunista, se lhe dermos o sentido que normalmente lhe dávamos dessa sociedade centrada num estado totalitário, não tem lugar no dicionário. Mas se entendermos nessa palavra aquilo que é a capacidade de uma distribuição correcta dos bens em benefício de toda a pessoa humana da família e da sociedade inteira, nessa altura ela tem absoluta razão de ser. O verdadeiro comunismo, entre aspas, tem a sua origem no Evangelho.

A queda dos regimes de Leste foi para alguns o fim da utopia! Não era humano a esperança desses homens numa sociedade livre e igual, dita comunista?
Certamente que compreendo a boa fé de muitos. Mas a realidade provou que a liberdade e a felicidade não se conquistam partindo de princípios errados.

O nosso distrito não tem grandes carências sociais comparando com alguns do Norte do País, mas tem muito desemprego e a emigração está aí outra vez em força. Tem consciência deste facto?
Não só consciência mas conhecimento concreto e prático das situações. Creio mesmo que de uma forma imparcial conheço a situação de todas as populações. Embora se diga que na zona do Ribatejo não há muitas carências, eu posso afirmar que há situações graves de pessoas e de famílias que não têm o indispensável para uma vida feliz. Enquanto existir uma família ou uma pessoa em situação de miséria ou pobreza extrema, não a poderemos ignorar. E é precisamente por isso que a Igreja exerce uma missão de acção social e caritativa através de instituições, como por exemplo a Caritas, que pode atingir a todos sem olhar ao crédito religioso, pelo simples facto de serem filhos de Deus.

Na sua opinião, qual é o maior problema dos jovens na sociedade em que vivemos?
Diria que a droga e o abuso do sexo, que são por sua vez consequências de uma sociedade violentada. É também a questão do desemprego. As coisas estão todas ligadas. Por outro lado, são o fruto de tudo aquilo que pode dar como resultado mais dinheiro. Por isso o jovem ao drogar-se talvez não pense que está a ser afinal fonte de receita para homens que querem ser os senhores do mundo, através do dinheiro. Todos nós sabemos isso. Assim como as guerras são em grande parte fruto da ambição de poder e da necessidade de não deixar parar as máquinas que produzem as armas, assim também a droga de alguma maneira aparece como uma necessidade de um grupo de pessoas muito grande que vive do rendimento que provém dessa droga.

E o que se passa em Timor? Qual deve ser o papel da Igreja na denúncia desta situação, uma vez que os políticos portugueses não têm voz para se fazerem ouvir?
Não conheço em profundidade o problema actual de Timor. Mas conheço duas coisas que são importantes. A primeira delas é que após o vinte e cinco de Abril, Timor foi alvo das cobiças de muita gente e aquilo a que nós chamamos a descolonização prestou-se a uma nova colonização. Em Timor isso parece muito claro. Foi de facto uma má decisão que gerou o que aconteceu com Timor. Por outro lado há outra coisa que me parece fundamental: o único suporte que ainda vale alguma coisa em Timor é a Igreja. A Igreja procura proceder sempre com muita prudência. Neste caso a prudência está a ser usada para que não se criem condições que acabem de destruir o que resta do povo de Timor, porque o futuro para aquela região deve ser a liberdade para todos e o direito à autodeterminação.

Como é o dia-a-dia de um Bispo?
Necessariamente o dia-a-dia de um Bispo está sempre marcado pela missão que lhe cabe. Divide o seu tempo entre a oração, a atenção aos problemas pastorais da diocese no acolhimento das pessoas, a começar pelos padres e depois na atenção também à Igreja universal. No concretizar das coisas, é a presença frequente nas comunidades cristãs, para ser um estímulo, dar uma palavra de orientação no sentido de ir criando uma comunidade viva em comunhão uns com os outros, onde todos se sintam responsáveis. Desde manhã, bem cedo, até à manhã seguinte, porque acabo sempre para lá da meia-noite. O meu dia é totalmente preenchido.

Às vezes até se esquece de fazer as orações?
Esquecer-me não, nunca me esqueço da oração que é fundamental. Posso, talvez, uma vez ou outra não dar tanto tempo à oração, mas se não tiver tempo de o fazer numa hora faço-o noutra.

De que forma é que a sua vivência infantil contribuiu para a vocação religiosa?
O ambiente familiar em que eu nasci e cresci nos primeiros anos foi sempre de uma grande vivência cristã. Os meus pais eram profundamente cristãos e empenhados na comunidade onde eu nasci. Desde miúdo e desde muito pequenino que eu comecei a ser um cristão activo. Fui crescendo num amor muito grande à Igreja e também, por isso, num desejo muito grande de servir a Igreja. Assim, nessa altura, decidi entrar no seminário e fiz uma caminhada até à idade em que podia tomar uma opção. E essa opção foi feita voluntariamente e corajosamente. A grande influência veio do crescimento na fé e de uma fé comprometida na Igreja.

Nunca hesitou a meio caminho?
R. — Não tenho presente no espírito qualquer momento de desânimo ou de dúvida. Talvez houvesse um ou outro momento de menos entusiasmo mas que se vencia imediatamente com a fé que havia em mim mesmo.

É difícil chegar até onde chegou?
Direi que é fácil quando seguimos uma vocação. E por outro lado é preciso sabermos que nada de grande se faz no mundo sem um esforço. A situação em que me encontro hoje como Bispo, não provém de um mérito de acção da minha parte mas apenas de uma escolha que é feita pelos homens da Igreja. Ser Bispo não é uma carreira, é uma vocação.

Entrevista de Joaquim António Emídio

Publicada na edição de Outubro de 1990

Texto editado

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