"No negócio aprende-se à nossa custa. À custa da nossa carteira"

"No negócio aprende-se à nossa custa. À custa da nossa carteira"
TEXTOS QUE FIZERAM HISTÓRIA

Uma tarde com António Maria Lopes, o Ferro-velho da Chamusca.

A cumprir o seu 33º ano de publicação, O MIRANTE decidiu republicar um conjunto de entrevistas, reportagens e outros textos, editados nos primeiros anos. São matérias que já só podem ser encontradas em edições em papel e que agora vão passar a estar disponíveis também na internet e só já isso justificaria a iniciativa. Mas são também textos que vale a pena ler, por manterem uma surpreendente actualidade, ou por revelarem informações e opiniões que ajudam a perceber melhor o percurso do jornal e da região.

Uma vez uma vizinha vendeu-me um baú velho. Combinámos sessenta escudos e eu paguei logo. Mais tarde ela mandou-me chamar e disse-me que se tinha enganado. 'Tenho esta falta deste dente aqui, está a ver?!' Faltava-lhe um dente à frente. "Eu não queria dizer sessenta mas sim setenta'.".

António Maria Lopes ri com gosto. Gargalhadas curtas, irreprimíveis, contagiantes. Depois cruza as mãos sobre a barriga e recosta-se no sofá. Os seus olhos piscam num tique por trás do vidro dos óculos. Sábado de Outono, Novembro de 1991. Estamos ali à conversa com o Ferro-velho da Chamusca, que nos dá conta da vida e da profissão. Pequenas histórias apenas, porque 75 anos são anos demais para contar numa tarde, a dois desconhecidos.

O destino também se engana.

António Maria Lopes está sentado num velho sofá. Por cima dele, pendurada na parede, uma reprodução da última ceia, em tecido, que na sala há uma outra mas pintada num prato. Se é rico disfarça muito bem. A casa é modesta, a mobília também. A alcatifa está gasta pelo uso.

"Vim para a Chamusca trabalhar de sapateiro para casa do mestre Zé da Silva, em 1940. No dia 1 de Dezembro, foi o funeral do pai do João Fonseca. Os outros foram ao funeral. Eu, como não tinha fato, não fui. Para passar o tempo, agarrei num saco e fui para uma rua, onde morava o Zé Gandum, que também havia de ser ferro-velho, e pus-me a comprar trapos às mulheres. Uma coisa de brincadeira".

Pára para limpar os óculos. As fotografias dos netos sorriem em cima da televisão. A memória é viva. Afiada. "A primeira pessoa a quem comprei foi à mulher do Pedro Costa. Os trapos eram muito bons, muito limpinhos. Eu já sabia que aquilo rendia alguma coisa. Comprei barato e enchi o saco. No dia seguinte, estava eu a trabalhar, apareceu por lá um comprador de peles, trapo e ferro-velho. O João Gameiro, do Carreiro da Areia. Eu disse-lhe que tinha uns trapos e fizemos negócio.

Os olhos piscam mais. Pressente-se o riso a caminho. "Ganhei mais naquele saco de trapo do que estando três dias a trabalhar de sapateiro." Pára de rir e fica em silêncio. Provavelmente tenta imaginar-se numa outra vida, como sapateiro. De qualquer maneira, ele mesmo confessa que, se não fosse ferro-velho só um emprego na Função Pública é que o teria tentado.

" Você perde dinheiro mas ganha juízo"

Profissionalmente é "comerciante de ferro-velho". Antigamente negociava em peles. Agora as peles e a lã baixaram muito e o trapo não dá nada. Fica o papel e o metal. Levanta-se sempre cedo. Seis, sete da manhã. Vai muitas vezes às aldeias do concelho da Chamusca. Gosta muito de ir, diz ele. e fala de Ulme, Chouto, Gaviãozinho, Pinheiro Grande, Carregueira, Arripiado, Semideiro.

A sucata vai para a metalúrgica de Torres Novas e o papel para a fábrica da terra onde nasceu. Ribeira Branca. É ele quem vai entregar, na carrinha que comprou nova há dez anos. Antes tinha uma velha furgoneta comprada em terceira mão por nove contos, em 1968.

Faz gestos curtos, tímidos, pouco exuberantes. tem as mãos ásperas, calejadas, deformadas. Sangra um pouco de um dedo. Ferida "de agora mesmo", de quando estava a trabalhar no meio da sucata, no quintal, a separar o útil do inútil, o alumínio do plástico, o ferro da borracha.

Repete muitas vezes, "está a perceber?". Satisfaz a nossa curiosidade. "A pele de coelho era para fazer chapéus. Aqueles chapéus felpudos. Havia muitas fábricas no Norte. Agora só Braga e Guimarães". Recorda-se do ferro-velho vir ao domingo, era ele miúdo, comprar as peles de coelho que toda a gente guardava penduradas num arame. "Já foi tempo", remata.

Agora tem o cabelo ralo, todo branco e lamenta-se. "Hoje em dia todos os negócios do ferro-velho são maus. Mas eu também nunca soube explorar a rainha vida. Sempre tive receio. Nunca quis alargar o negócio. Eu ia aqui e ali e diziam-me: 'Leve as peles e depois paga'. E eu não. Se não tinha dinheiro não comprava. Ao princípio até quase me envergonhava deste negócio. Ia só pelos cabeços comprar coisas às velhas".

Também nunca vendeu para antiquários e trabalhou sempre sozinho. Não revela números. Fala dos outros colegas de profissão com milhares de contos empatados em sucata, mas a voz não revela inveja. Lamenta-se apenas, resignado.

"No negócio aprende-se à nossa custa. À custa da nossa carteira. O Zé Nicolau de Vila Moreira, que já morreu, comprava-me peles em Torres Novas. Eu dizia-lhe sempre: 'Oh senhor Zé, veja lá se me dá mais pelas peles que eu perco dinheiro!' Mas ele não se comovia: 'Você perde dinheiro, mas ganha juízo!'".

"Hoje é domingo. Vamos mas é embora que pode vir por aí a fiscalização"

Tem quatro netas e um neto. Um filho e uma filha. O filho está presente na sala. Fotografia da tropa, farda nº 1 e divisas de furriel. "Uma vez entrou aqui uma pessoa e perguntou-me 'Oh senhor António, quem é aquele general?'.

A única vez que a voz lhe sai magoada é quando fala da doença da mulher. Dois anos no sanatório e seis operações. "Não havia Caixa, nem ajudas. Gastei muito dinheiro". Passa a nuvem e António Lopes volta a brincar. "Ninguém me ajuda no negócio. O meu filho está nas Caldas da Rainha, trabalha numa farmácia. O meu genro chegou, estava eu ali a partir umas coisa, voltou-me logo as costas. Foi-se logo embora". Ri outra vez. Rimos todos de vontade.

"Uma vez o meu genro foi para a fazenda comigo. Passado um bocado diz ele: "Hoje é Domingo, vamos mas é embora que pode vir por aí a fiscalização. Não estava com medo que eu fosse multado. Aquilo era pressa de ir para o petisco".

Na natureza nada se perde, tudo se transforma

Vamos da sala para o pátio das traseiras, o paraíso da sucata, chamo-lhe eu. Paragem no quarto para ver uma cama antiga de trança. A mulher desculpa-se: "Isto é casa de pobre". Por cima da cama, um pequeno crucifixo. A Vera e o irmão Nuno Miguel, espreitam de vez em quando o avô mas não se aproximam. No quintal, ferro-velho à esquerda e à direita, papel em frente, resguardado, e uma capoeira onde meia dúzia de galinhas piam tristemente.

Provocamos ruídos de metal ao passar. Andamos a inspeccionar ao acaso. A tentar descobrir no velho o que já foi novo. A mulher aparece outra vez. "Até é uma vergonha mostrares essa lixaria toda".

A "lixaria" são tachos e panelas velhas, camas de ferro, torneiras, baterias de carros, travões de motorizadas, radiadores, fogões, máquinas a petróleo, lavatórios antigos, aduelas de ferro, cântaros, fogareiros, escadotes, cadeiras de campismo, ferros de engomar, aduelas de barris, antenas de televisão, pedaços de canos, um suporte de um bidé do tempo da primeira República, pelo menos, rodas e selins de bicicletas, peças enormes de máquinas agrícolas. Até cartuchos dos fogões do "Camping gás" andam por lá, enferrujados, a espreitar no meio do monte.

António Lopes não se furta a falar dos preços. Os jornais paga a 4 escudos, o cartão a 5, a apara branca da tipografia entre 10 e 20. "Uma vez comprei quatro quilos de arame de fardo. O arame tinha sido roubado e ainda tive que ir ao tribunal. Quem é que se dá ao trabalho hoje, de roubar quatro quilos de arame?" As panelas velhas paga-as a 30 escudos, mas já pagou a 120.

Damos uma última olhadela ao quintal antes de sairmos. As três ou quatro árvores de fruto estão anémicas. Ali só cresce mesmo sucata. Estamos no ponto de partida de uma novo ciclo de vida. A matéria descansa antes de voltar a ser moldada pelo homem. Vem-nos à memória Lavoisier e as aulas de físico-química. "Na natureza nada se perde, tudo se transforma".

Texto de Alberto Bastos e Fotografias de Joaquim António Emídio

Reportagem publicada na edição de 30 de Novembro de 1991 de O MIRANTE

Texto editado

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