Tratar de hérnias, ciáticas e entorses no intervalo de servir bicas e bagaços

Tratar de hérnias, ciáticas e entorses no intervalo de servir bicas e bagaços

Com Zé Rosa, o endireita do Pinheiro Grande, numa tarde de Dezembro de 1991.

Portugal é um país de habilidosos. De desenrascados. E é um país de contrários e de contrastes. Por cada Nossa Senhora das autênticas há uma dúzia de santas da Meia Via. Por cada Selecção Nacional há milhão e meio de treinadores de bancada. Quando não estamos a jogar marcamos golos com os dois pés. Com a garganta, se for preciso.

Qualquer português a dormir sabe mais que mil génios acordados. Não há Prémio Nobel que resista a um crânio nacional. Para o português não há licenciaturas, nem doutoramentos. O destino é que marca e a marca é de nascença. É a sina. É o fado. Na medicina então, nem se fala. Por cada clínico geral há uma bruxa do Pego. Por cada ortopedista há mil e um endireitas.

No Pinheiro Grande há o Zé Rosa que falou com O MIRANTE meia hora e endireitou um doente em três minutos. Assim, sem cursos nem nada. Até cura doutores, disse ele. E nunca falhou, jura. Caso para dizer que, se o Papa sabe, vai de endireita a santo. É sem espinhas!

Uma de bruxo

São quatro da tarde, 7 de Dezembro de 1991. Estamos no Pinheiro Grande, Chamusca, e vamos entrando no café que o homem nos indicou quando parámos à entrada da povoação. O endireita, agora não é endireita. Está ao balcão a aviar bicas e bagaços. O café é ao fundo do corredor. À direita, fica o minimercado com as portas de vidro cerradas.

É Sábado e chove a cântaros. Humidade por todo o lado. Dia mesmo bom para atiçar dores reumáticas e ciáticas. Em dias assim é o esqueleto quem paga as favas. O endireita sabe-o bem. Tão bem que, quase no fim da conversa, arrisca uma de bruxo: "Estou aqui há vinte minutos. Ainda não fui ver mas já lá devem estar três ou quatro pessoas para eu tratar. Mas isso é de certeza absoluta!".

Falhou! Só lá estava um doente e não era ciática. Zé Rosa nem comenta o falhanço. Não está ali para adivinhar mas para endireitar. Como endireita é que é sempre certo. Cem por cento garantido. "Nunca nenhum doente voltou para trás". afiança.

Os "tropédicos"

O endireita não se tenta furtar à entrevista. Mobiliza o filho para o negócio do café e conduz-nos a uma arrecadação. Sentamo-nos em grades de cerveja. Há teias de aranha, um carro e uma carrinha. Por baixo da carrinha espreitam batatas. O barulho da chuva é enorme quando começamos no jogo das perguntas e das respostas. Cronologicamente, que é como dá mais jeito.

"Isto de ser endireita nasce com a pessoa", diz Zé Rosa. No entanto ele teve que ir primeiro à tropa para descobrir o seu destino. Abençoado quartel que tanta vocação despertas. "Em 1968 quando estava na Força Aérea, na Beira, pedi ao Kaúlza de Arriaga (Comandante Chefe das Forças Armadas em Moçambique) e fui para a África do Sul tirar um curso de massagista - ossista. Mas o curso chinês, porque o português é fazer festas na pele. Esse curso é ir logo directos ao assunto. Seja a dor que for, ao fim de 24 horas é obrigada a desaparecer. Eu era ajudante de operador tropédico. Ajudante dos tropédicos".

Pensamos na guerra, nos tropedos, mas logo descobrimos que nos enganamos. Tropédico é a sua maneira de dizer ortopédico. O homem não fala de tropedos, fala de ossos. "Aprendi muito com o curso e com o Dr. Bentes". Depois dos tropédicos já nem nos atrevemos a perguntar se o Dr. Bentes era o mesmo dos rebuçados que se vendiam nos estádios de futebol.

Seja como for, Zé Rosa voltou de África e continuou a não ligar muito à arte para que estava reservado. "Quando vim da tropa meti requerimento para a polícia e para a CP". Andaram os cromossomas ali às voltas para dar um endireita ao país e ele, nada. Nada, é como quem diz. Foi para a CP. O que vale é que Deus não dorme.

Aos poucos e poucos Zé Rosa vai aproveitando os seus conhecimentos e o seu jeito. Faz nome na praça e começa a marcar horas para as consultas. Agora é "o endireita do Pinheiro Grande" e vêm pessoas de Espanha para se entregarem nas suas mãos, conta ele. Outras atravessam o Oceano. Vêm torcidas da ciática, voltam felizes, garante. "Ainda há muito pouco tempo veio aqui uma pessoa da Madeira, para lhe tirar uma ciática. Veio de avião. Tirei-lhe a ciática, foi-se embora. Já telefonou a dizer que estava boa".

"Ao domingo à tarde estão aí todos batidos"

O homem tem uma voz arrastada, nasalada, e a modéstia não mora ali. Quando lhe dão asas ninguém o agarra. Às vezes cai em contradições, mas nem nota. "Só trabalho com as mãos. Não tenho equipamento nenhum. É uma cama, um sofá, um banco e mais nada". Dez minutos depois, para dar uma de cuidadoso, já não diz o mesmo, "...em casa tenho aparelhos de tensão. Normalmente quando é assim mais velhos e que sofrem do coração, vê-se a pulsação, vê-se a tensão. Depois trabalha-se".

Tem mãos rudes, grossas. As unhas sujas. Está sempre a coçar-se. Diz, pois... pois... pois... A maioria dos seus clientes é gente do campo, é ele que confirma. "Pessoal mais do campo". Depois deve pensar que está a ser modesto e conta da clínica e das 28 equipas de futebol. Conta à maneira dele.

"...tenho consultório em Tomar, com médicas de Coimbra. É uma clínica particular. Vem uma médica do Santa Maria ali e dá consultas de 15 em 15, de 20 em 20 dias e eu vou todos os sábados das 10 às 11. Ciáticas, dores de coluna, hérnias".

A chuva aumenta de intensidade. O discurso é atabalhoado e enrolado, às vezes incompreensível. Você tem mesmo habilitação como massagista? "Tenho... pois..." Silêncio. Depois emenda. "Na altura tinha, agora já não, porque agora é preciso estudos". O homem andou de cavalo para burro. Que raio de habilitações eram as dele para passaram assim de validade como o atum?

Queremos saber que médicos é que o contrataram para a clínica. Fala num «Belanda, um de Coimbra» e na «doutora Ana de Santa Maria, que me conhecia já dos outros tempos.".

A acreditar nele há clínicas e médicos que não ligam às ninharias das habilitações. E com as equipas de futebol é o mesmo. "Tenho 28 equipas de futebol a assistir em casos graves. União de Santarém, de Tomar. Vila Nova da Barquinha, Entroncamento, Golegã... toda esta zona aqui". Pára um pouco para pensar. Depois acrescenta. "O Eléctrico de Ponte de Sôr.... Ao domingo à tarde, das seis às dez, estão aí todos batidos. Da Chamusca vêm alguns também. Entroncamento, Ferroviários, tudo. Vem aqui muito pessoal", garante.

"Levanta-te e anda"

Zé Rosa acede a falar do seu colega endireita, "Ti Chico de Alter". "Ele é só osso. Eu é ligamentos, hérnias discais, ciáticas. O de Alter quando é ciáticas e ligamentos manda-mos para baixo". Parece o clínico geral a despachar para o especialista do Pinheiro Grande. E o especialista não se fica pelos colegas endireitas. Fala também dos médicos.

"Cinquenta por cento dos médicos já mandaram pessoas para aqui. Tenho muitos casos, pelo menos de médicos ali dos lados de Abrantes; dos lados de Tomar e dos lados de Santarém, que me aparecem aqui com pessoas e com papéis escritos do que o paciente se queixa, o que é que ele tem".

Passa a língua pelos lábios secos. Sinal que a conversa está a chegar ao fim. Olha-nos com uns olhos pequenos, redondos. Diz que tem que voltar para o café. O que ele quer é ir ver se tem clientes, mas isso só vamos descobrir mais tarde.

Esticamos a conversa e ele volta a animar-se quando lembra casos difíceis. "Ainda agora me apareceu uma pessoa ali de Vale de Figueira. Uma senhora que já fazia as necessidades todas na cama. Uma ciática que lhe apanhava as pernas. Estava paralítica na cama. Tinha aí 45 anos. Resolvi-lhe o problema e já anda a trabalhar". Conta a história com desprendimento, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Quando lhe perguntamos se não faz nenhum acompanhamento do doente a seguir à consulta, responde no mesmo tom. "Com o tratamento é obrigado a ficar bom. Só precisa de 48 horas de repouso e gelo, para as desinflamações, álcool com cânfora e emplastros Leão".

É assim o endireita do Pinheiro Grande. Vai a direito. Mas os tratamentos nem sempre são suaves. "Há pessoas que não se aguentam, desmaiam. Há muito problema assim desses. Pessoas de certa idade, não se pode apertar com elas logo ao princípio", explica. Lembramos-lhe os cardíacos. Então e se for uma pessoa doente do coração que não lhe diga nada? A resposta vem pronta. "Mas eu pergunto sempre.".

Sempre, sempre, não pergunta. Pelo menos não perguntou ao Elísio Moura, das Arreciadas, Abrantes, o único paciente que o esperava sentado a uma mesa do café.

"Obrigado e desculpe ser tão pouco"

Ajudamos o paciente a levantar-se e voltamos para a arrecadação. Agora somos seis. Uma pequena multidão numa outra sala, tão húmida e desconfortável como a primeira. Há frascos de pickles nas prateleiras e pouco mais. O doente poisa as muletas e senta-se num banco ao centro. O endireita senta-se em frente dele.

Há curiosidade e expectativa. Um pé está engessado, o direito. A dor maior é no outro. Elísio descalça o sapato e vai para descalçar a meia mas Zé Rosa diz que não é necessário. Pega no pé, procura com os dedos e faz uma pequena e rápida rotação. Ouve-se um estalido, "Já está!", diz o endireita. "Tinha o artelho todo fora".

O doente faz uma expressão de incredulidade. Não ficou convencido, mas calça o sapato. Zé Rosa diz-lhe para bater com o pé no chão. Ele bate e queixa-se. Ensaia uns passos e volta a descalçar-se. Está branco. O endireita repete a operação. Os dois acompanhantes aproximam-se mais. Ouve-se o estalido.

Resignado, Elísio Moura volta a calçar-se. Nota-se bem que está desapontado. Mesmo assim pergunta quanto é. Zé Rosa já nos tinha dito que não leva dinheiro nenhum, mas responde: "É o que quiser dar". São mil ou mil e quinhentos escudos que mudam de dono. Estamos em má posição para ver, mas é livre de impostos. "Obrigado, desculpe. É pouco mas de boa vontade". O doente pega nas muletas e sai amparado, dorido e desiludido.

Reportagem publicada na edição de 15 de Dezembro de 1991

Texto de Alberto Bastos e Fotos de Joaquim António Emídio

Texto editado

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