"As pessoas têm medo do que desconhecem e é por isso que são contra o nuclear"
Entrevista com o Físico Nuclear Eduardo João Martinho, em Março de 1994*
Natural da Chamusca, Eduardo João Martinho dedicou toda a sua vida à investigação cientifica. Engenheiro Nuclear e Licenciado em Ciências Físico Químicas, é investigador do Instituto Tecnológico e Nuclear de Sacavém e um dos responsáveis pela exploração do Reactor Português de Investigação.
Que recordações é que guarda da sua infância na Chamusca?
Marcou-me o tempo que andei na escola e fui aluno do professor Filipe Baptista, na 4ª classe. Recordo-me do tempo em que fui marçano no armazém Pedroso & Rodrigues, que era do Sr. Francisco Castelão, onde conheci pessoas como o João Petisca, o José Araújo, o Acácio Araújo, o Raimundo, e o Constantino Coelho. Foram pessoas que, à sua maneira, me ajudaram a crescer. Além disso, recordo o Tejo, e os passeios ao Tapadão. Eu era um pescador amador e ia pescar para as lagoas do Tapadão, onde havia belas carpas e um ou outro barbo.
O saudosismo é um sentimento retrógrado?
Não é retrógrado, se for entendido no bom sentido. Os tempos passam, as pessoas evoluem, mas eu sempre mantive a ligação às minhas raízes. A Chamusca continua a ser uma terra de referência para mim.
Conseguir trabalhar no campo da investigação, no nosso país, continua a ser complicado?
A situação é, de facto, um pouco complicada, para os jovens, em termos de mercado de trabalho a nível da investigação, porque os tempos actuais são pouco virados para a cultura e para a ciência.
Como olha para a nossa classe política?
Os nossos políticos são, essencialmente, pessoas licenciadas em Direito, em Economia, alguns Engenheiros e pouco mais. Havia vantagem em que a Assembleia da República e os partidos políticos tivessem uma representação mais equilibrada. Os políticos só vêm as questões pelo lado jurídico e só vêm cifrões à frente dos olhos. Há uma dissociação em relação à realidade.
E mais cientistas na política?
O que a ciência no nosso país precisava era de alguém que fizesse ver aos políticos a importância que têm para um país a cultura e a investigação.
A abertura das fronteiras a nível da Europa abriu portas aos nossos jovens que querem trabalhar em investigação.
Hoje há mais oportunidades. Há programas comunitários que facilitam a circulação de jovens e que lhes proporcionam uma vivência de trabalho e de estudo noutras universidades. Isto não é uma figura de retórica. Acontece realmente.
Há muita massa cinzenta nossa a trabalhar em projectos de investigação europeus?
Há bastante gente a fazê-lo. Os portugueses são tão bons como os demais. Só precisam ter oportunidades.
Para o cidadão comum, a investigação na área da energia nuclear aparece associada à parte militar. Em Portugal também se passa isso?
Não. Mesmo nos outros países, isso já foi mais assim. Durante o tempo da "guerra fria", de facto eram canalizadas verbas extremamente elevadas, nos países mais desenvolvidos, para as aplicações militares. Era um período em que, era ver quem se armava mais, para tentar dissuadir o adversário.
Apesar do fim da "guerra fria", continuou a haver investimentos em armamento.
É verdade que continuam a gastar-se somas brutais na máquina de guerra, tanto na vertente nuclear como na vertente tradicional. Um avião dos mais sofisticados representa uma fracção importante, por exemplo, do nosso Produto Interno Bruto. Isso faz pena, quando vemos que, um pouco por todo o lado, há fome e há miséria.
Muitas descobertas feitas à custa do orçamento militar foram extremamente úteis para o desenvolvimento noutros sectores. Se calhar não teriam sido feitas se não fosse para fins militares.
Tem toda a razão. O facto de se ter investido no programa militar nuclear dos Estados Unidos, por exemplo, deu lugar a um avanço no conhecimento que, obviamente, foi útil no campo civil. Toda a investigação que foi feita ligada à construção da primeira bomba atómica, teve repercussões ao nível das aplicações pacíficas.
Fazer investigação com i grande
O que é que estão a fazer os nossos investigadores e cientistas?
Um país com fracos recursos, como Portugal, nunca poderá ser comparado a outros países que têm mais recursos e uma tradição científica muito maior. O trabalho de investigação é cada vez mais pluridisciplinar, tem que envolver grupos com especialistas de várias disciplinas e só assim, com grandes máquinas, se podem realizar grandes projectos e fazer descobertas daquelas que ficam registadas historicamente e ganham prémios Nobel. A investigação que se faz em Portugal, é um pouco à medida do país.
Mas há cada vez mais cientistas portugueses envolvidos em projectos internacionais.
Os portugueses que estão no estrangeiro, integrados noutras equipas com uma dimensão grande, fazem parte daquele grupo de portugueses privilegiados que podem estar a trabalhar na investigação com i grande, se assim posso dizer.
Está totalmente afastada a hipótese de, por exemplo, o Senhor vir a ser o autor de uma grande descoberta?
Cada uma das pessoas que trabalha em ciência vai contribuindo com aquilo que está ao seu alcance. Vai fazendo pequenos avanços no conhecimento e a certa altura há um indivíduo que consegue fazer a síntese pegando nos conhecimentos existentes e dar o passo qualitativo. Eu não fiz descobertas muito importantes, mas posso dizer que muitos dos trabalhos de que sou autor ou co-autor, são referenciados na literatura científica. Há cientistas Coreanos, Argentinos, dos Estados Unidos, de Inglaterra, de Espanha, de França, da Índia,etc, que citam trabalhos meus. Isso leva-me a crer que, nesta rede desconhecida de gente que trabalha na mesma área, algum mérito tiveram esses trabalhos de forma a serem referenciados.
Para que serve o nosso reactor nuclear?
Muitas vezes confunde-se o reactor com uma central nuclear. O reactor nuclear é uma fonte de energia e uma fonte de neutrões. Quando se pretende aproveitar a energia é através da via das centrais nucleares. O reactor nuclear de Sacavém é um reactor destinado a investigação. É uma fonte intensa de neutrões.
E por quem são utilizados esses neutrões?
Os neutrões são partículas que entram na constituição da matéria e que têm propriedades que fazem com que sejam um instrumento útil para a investigação. Os neutrões produzidos pelo nosso reactor nuclear são utilizados por diferentes pessoas em medicina nuclear, análise nuclear, estudos de nutrição e saúde, estudos de ambiente, etc.
Pode dar um exemplo prático?
Muito sinteticamente. Se eu tiver uma amostra ambiental, um sedimento do rio Tejo, por exemplo, se eu preparar esse sedimento, o meter dentro de um contentorzinho e o irradiar junto do reactor de Sacavém, essa amostra vai ser bombardeada por neutrões e torna-se radioactiva. Eu depois retiro a amostra e vou estudar a radioactividade emitida por esse sedimento. Quem diz sedimento, diz uma planta aquática, uma amostra de um peixe, ou a própria água. Através dessa análise, é possível identificar e quantificar elementos químicos que entram na sua constituição. Ficamos a saber, por exemplo se tem mercúrio., se tem arsénio, etc. E, portanto, eu posso fazer um estudo de natureza ambiental do Tejo, fazendo uma recolha de amostras num determinado ecossistema, irradiando essas amostras com neutrões e analisando as radiações emitidas.
Não é possível fazer esse estudo de outra forma?
Há métodos convencionais de química que possibilitam fazer essas análises, só que a análise por activação com neutrões é um tipo de análise extremamente sensível. É muito exacta, mas é sobretudo muito sensível. Através dela, nós temos a possibilidade de determinar quantidades ínfimas de um determinado elemento químico. Ou seja, temos capacidade de ir fazer uma análise onde outras técnicas não chegam. Não quer dizer que a análise por activação seja única digna de crédito, mas consegue resolver certos problemas que outras não conseguem.
"Eu sou contra a manipulação das pessoas"
Porque é que os ecologistas são tão críticos do nuclear?
São muito críticos em relação a uma coisa que porventura desconhecem.
Os cientistas não gostam dos ecologistas?
Não é uma questão de gostar ou deixar de gostar, é uma questão de objectividade. Quando organizações como a Quercus se apresentam a defender uma reserva natural, ou lutam para que o solo nacional não venha a ser uma floresta de eucaliptos, eu estou de acordo...
Quando são contra a instalação de uma central nuclear, você é contra.
Não. Acho que deviam informar-se. Deviam aprofundar a questão e debatê-la em termos honestos. Não é jogar com o medo das populações para virar as populações contra o nuclear. Eu sou contra a manipulação das pessoas. Quando os objectivos são sérios e as estratégias correctas, e quando as pessoas utilizam argumentos sólidos, eu respeito-as.
Tem que reconhecer que os acidentes nucleares acabaram por contribuir para essa imagem negativa.
Sem dúvida. O nuclear está marcado por ter aparecido na história da humanidade através da bomba atómica, e mais recentemente aconteceu o acidente de Chernobyl que é de facto o único acidente nuclear da história.
O único?
Sim. O único acidente de uma central nuclear com repercussões para o exterior foi Chernobyl. Foi um acidente grave que não pode repetir-se.
E a questão dos resíduos nucleares?
O combustível nuclear, depois de ser utilizado numa central, é tratado, sendo-lhe retirados os produtos radioactivos que são disseminados numa matriz vítrea, ficando estabilizados. Em seguida esses resíduos são metidos em contentores cujo revestimento é estudado para durar milhares de anos...
E são atirados para o mar...
Não. Não. Aí é que se fazem confusões. Os resíduos de alta actividade de uma central nuclear, não são lançados para o fundo do mar. Esses resíduos estão a ser colocados em reservatórios geologicamente estáveis, em particular minas antigas de sal gema.
Porquê aí?
Se o sal existe na mina, ele foi formado por oceanos que aí existiram A crosta terrestre sofreu grandes evoluções, mas durante milhões e milhões de anos não passou por ali água. São, portanto, regiões geologicamente estáveis. Além disso, os resíduos radioactivos de alta actividade de uma central nuclear, ocupam poucos metros cúbicos e uma mina de sal gema pode receber resíduos de muitas centrais nucleares.
E para o fundo do mar o que vai?
Eu não concordo com o lançamento de resíduos radioactivos para o fundo do mar. Acho que têm que se encontrar outras soluções, mas o que se manda para o fundo do mar, são coisas diferentes. São resíduos de média e fraca radioactividade provenientes de trabalhos laboratoriais. Esse tipo de resíduos laboratoriais ou efluentes radioactivos são tratados, acondicionados e enviados para fossas no fundo do mar.
E isso vai contaminar o mar.
Eu ficaria mais tranquilo se não fosse feito o lançamento para o fundo do mar.
Vão ser sempre resíduos e sempre perigosos.
É verdade, mas a mim preocupa-me mais a poluição de certos rios, por exemplo, ou os camiões tanque que se cruzam connosco nas estradas. Preocupa-me muito mais o que se passou no Alaska com o derrame do petróleo ou o que aconteceu no Bósforo. Essas é que são as grandes questões, porque a indústria nuclear é uma indústria com uma segurança do tipo, ou superior, à da indústria aeroespacial. O que me preocupa é ver os aviões a levantar do aeroporto da Portela em direcção a minha casa quando o vento está do lado sul.
Toda essa segurança não convenceu os nossos governantes a deixarem instalar em Portugal uma central nuclear.
É uma questão essencialmente política. Não há nenhum governo que tenha a coragem, perante os eleitores, de se assumir como defensor da instalação de uma central nuclear.
Qual a razão de todo o medo do nuclear?
As pessoas têm medo do que desconhecem. Como desconhecem os aspectos técnicos do nuclear, as pessoas têm medo do nuclear. Como os políticos dependem das pessoas, porque são as pessoas que os elegem, pensam duas vezes, antes de lançar no debate uma ideia que pode lhes pode ser prejudicial em termos de imagem. Um político joga na oportunidade e só avança para um debate de ideias sobre um determinado assunto quando a opinião pública esta preparada para esse efeito.
A solução da energia nuclear foi posta de parte.
Há uma experiência de centrais nucleares em todo o mundo, desde a década de cinquenta. Neste momento há 450 em funcionamento. Na Europa, a França depende da energia nuclear. Nós consumimos em Portugal energia eléctrica de origem nuclear. A minha convicção é de que o nuclear vai ser retomado nos países que têm capacidade técnica e económica para isso.
Defende a instalação de uma central nuclear no nosso país?
Não estou a defender mas também não estou a condenar. É uma decisão política. De qualquer modo. Eu não excluiria a possibilidade de se instalar uma central nuclear em Portugal. Não há razão nenhuma para não se construir, se for necessário.
Cá vai a pergunta que se faz habitualmente aos cientistas. Acredita em Deus?
Eu sou agnóstico. Se for para responder sim ou não, eu digo não. Não acredito em Deus.
Ciência com fé, ou fé na ciência?
Ciência com fé, na medida em que se acredita que a ciência tem um papel a desempenhar para o bem estar da humanidade. Fé na ciência no mesmo sentido, mas dissociando ciência e religião. A religião joga com factores estranhos à ciência. A ciência joga com factos e evidências experimentais. A religião não.
E em Ovnis (Objectos Voadores Não Identificados), acredita?
Não tenho opinião formada. Custa-me a crer que a vida exista só à superfície da terra. Da mesma maneira que houve condições que propiciaram o aparecimento de vida na terra, admito que, noutras galáxias, existam igualmente condições que tenham propiciado ou propiciem a. existência de formas de vida, provavelmente diferentes. Daí até acreditar em Ovnis, eu tenho dificuldade.
Gosta de ficção científica?
Os filmes são demasiado ficcionados, mas há certa literatura científica que é de facto espectacular, como a do Júlio Verne, que conseguiu, a muitos anos de distância, prever certo tipo de acontecimentos.
Qual o tema que escolhia para um livro de ficção científica?
Se eu tivesse capacidade para escrever ficção científica, talvez o domínio onde eu me metesse, fosse o domínio da biofísica, da bioquímica ou da biologia.
E haveria uma história de amor como pano de fundo?
Convém sempre temperar a ficção com o sentimento.
Os cientistas não são cerebrais e frios?
São racionais, relativamente ao discurso, à prática, e à maneira como olham a natureza, mas são pessoas de carne e osso, com sentimentos, com fragilidades, e com tudo o que é característico do ser humano.
O cientista dos filmes antigos que em vez de estrelar o ovo estrelava o relógio de pulso, não existe?
Há pessoas que são distraídas, mas isso acontece a todos e não apenas aos cientistas.
E a si, acontece-lhe?
O máximo que me aconteceu foi pôr sabão da barba na escova de dentes. Eu não sou um cientista de cabelos compridos, olhar esgazeado e completamente distraído. Sou uma pessoa normal e bem comportada.
"Estudei com o apoio de um grupo de pessoas de boa vontade"
Tarde bonita de Sábado. Do Senhor do Bonfim, na parte alta da vila da Chamusca avistamos o Tejo. Eduardo João Martinho olha a terra onde nasceu e vai recordando nomes, datas e acontecimentos.
Os pais primeiro. José da Silva Martinho, operário fabril e Maria Emília Cardoso Martinho, empregada doméstica. A seguir, António Dores Carmo, chefe de repartição de finanças da Chamusca, que reuniu um conjunto de boas vontades para que o jovem Martinho, então com catorze anos, pudesse continuar os seus estudos em Santarém.
"Nessa altura, a minha mensalidade era de seiscentos escudos. Metade era paga pela minha mãe, a outra metade por um conjunto de pessoas. Eng. Carlos Amaral Neto, Dr. Eduardo Amaral Neto, Eduardo Vaz Tecedeiro, o padrinho de Baptismo e Manuel Vaz Tecedeiro". Para outras despesas Eduardo Martinho ganhava algum dinheiro dando explicações.
Mais tarde, em Lisboa, trabalhou como Prefeito no colégio Manuel Bernardes, ao mesmo tempo que se licenciava em Engenharia Físico-Química.
Quando terminou o curso foi convidado para trabalhar no Laboratório de Física e Engenharia Nuclear e um ano depois partiu para França onde fez um curso de Engenharia nuclear.
Regressou a Portugal e durante vários anos conjugou o seu trabalho no Laboratório com o cargo de Assistente na Faculdade de Ciências. "As exigências do ensino universitário enriquecem. Obrigam-nos a aprofundar as questões. Enquanto professor, aprendi muitas coisas que me foram úteis no meu trabalho de investigação".
Duas horas passadas de conversa, já com o gravador desligado, voltamos a falar da Chamusca. Eduardo João Martinho reconhece que é praticamente impossível deixar de viver em Lisboa, mas a passagem pela sua terra de tempos a tempos, tomou-se já um ritual obrigatório. Por causa dos amigos e por causa das boas recordações de infância.
*Entrevista de Alberto Bastos e Joaquim António Emídio
Fotos de Joaquim António Emídio
Publicada na edição de O MIRANTE, de 24 de Março de 1994
“Textos que fizeram história”
A cumprir o seu 33º ano de publicação, O MIRANTE decidiu republicar um conjunto de entrevistas, reportagens e outros textos, editados nos primeiros anos. São matérias que já só podem ser encontradas em edições em papel e que agora vão passar a estar disponíveis também na internet e só já isso justificaria a iniciativa. Mas são também textos que vale a pena ler, por manterem uma surpreendente actualidade, ou por revelarem informações e opiniões que ajudam a perceber melhor o percurso do jornal e da região.