"Os media continuam a seguir os velhos hábitos de silenciarem quem não gostam"

"Os media continuam a seguir os velhos hábitos de silenciarem quem não gostam"

Entrevista ao historiador Joaquim Veríssimo Serrão em 11 de Março de 1998.

O ponto de partida para esta conversa com o Professor Joaquim Veríssimo Serrão foi o lançamento do Volume XIII da sua História de Portugal (1926-1935). Fomos recebidos em sua casa, uma vivenda em Salmeirim, às portas da cidade de Santarém. Ali, numa vastíssima biblioteca onde o acesso às prateleiras mais altas é feito com recurso a um escadote, o historiador trabalha na sua obra usando fichas escritas à mão devidamente arrumadas em gavetas.

P.- Quando começou e quando é que acaba este projecto da História de Portugal?

R.- Quando era mais novo edifiquei na minha cabeça o projecto de escrever uma História de Portugal. Para esse efeito fui reunindo milhares de fichas das leituras que fazia e dos documentos que encontrava. Queria que essa História de Portugal fosse o corolário da minha vida de professor e de historiador. Ocorreu o 25 de Abril e, com grande espanto meu, que sempre me dei bem com os meus alunos, fui saneado das funções docentes em princípios de Maio de 1974.

P - Na altura era Reitor da Universidade de Lisboa.

R - No dia 26 de Abril apresentara a demissão do cargo de Reitor e preparava-me para voltar àquilo que era o meu emprego e sempre foi a minha vocação: professor universitário.

P - Qual passou a ser a sua situação?

R - O saneamento de que fui objecto fez-me permanecer em casa, afastado da Universidade, durante quatro anos, muito embora não me fossem retirados os meus honorários uma vez que não havia razões para me impedirem de ser docente. A situação criada levou-me a antecipar o projecto de escrever a História de Portugal.

P.- Há quem diga que o senhor é mais um contador de histórias do que um historiador.

R. - Reconheço que tenho um método de fazer história que nem todos apreciam mas vou continuar a ser-lhe fiel. Não faço afirmações que não possa justificar em notas de rodapé. Não quero dizer com isto que não possam ser notas sujeitas a discussão. Procuro averiguar os factos e entre várias versões escolho a que me parece melhor, mas tenho o cuidado de o mencionar em nota de rodapé.

P.- Como é que vive com a sua consciência ao verificar, depois de um livro publicado, que deixou para trás uma fonte importante?

R.- O escritor Bernard Shaw dizia que qualquer livro só deveria ter segundas edições. Significa que a pessoa, depois de fazer um livro, sente sempre a necessidade de emendar, de corrigir, de acrescentar. Por isso se fazem segundas edições corrigidas e aumentadas. Depois da investigação feita há sempre novos dados.

P.- Sente-se preparado para escrever sobre factos da nossa história ainda muito recentes?

R.- Até há trinta anos dizia-se que a História deveria ter perspectiva, que não se devia escrever a História do presente, mas sim a História do passado mais ou menos recuado. Essa concepção hoje alterou-se por completo porque nós não fazemos só História; estamos a viver na História. Outros meios extraordinários de captação e de informação apareceram, nomeadamente as fitas magnéticas, os postais, o cinema, os microfilmes. Tudo isso dá hoje ao historiador uma ferramenta colossal para apanhar o acontecimento e historiá-lo.

P.- Tendo sido amigo de Marcelo Caetano, por exemplo, o seu trabalho não fica condicionado?

R.- Não tenho rancores. Tenho convicções fortes e respeito a opinião dos outros. Não serei exemplo da piedade cristã mas sou um homem que admite aos outros os erros e as deturpações, como eu próprio os posso ter nas afirmações que faço e nas coisas que escrevo.

P.- Alguns dos seus críticos acusam-no de usar demasiados adjectivos na sua escrita, nomeadamente quando se refere a determinados personagens mais recentes. "Ilustre", "Brilhante", "Distinto", "Insigne"...

R.- Há uma certa injustiça nessas críticas. Por exemplo, ao Rei D. Manuel chamei-lhe "Excelente" e o mesmo ao Rei D. João II, mas creio que quando trato de figuras mais próximas de nós muito raramente emprego esses adjectivos. Como homem humilde aceito e respeito as hierarquias e habituei-me a chamar insigne a Alexandre Herculano como historiador, mas já não chamo o mesmo a Alfredo Pimenta. Quer se goste quer não se goste o patriarcado do Cardeal Cerejeira foi um tempo que marcou a vida portuguesa, daí eu considerar o pontificado como brilhante.

P.- Quem é que o ajuda nas suas pesquisas?

R- Ninguém. Habituei-me, desde sempre, cada vez que leio um jornal ou um livro, a fazer fichas. Por autores, por locais, por temas. Tudo o que leio e me interessa faço o resumo numa ficha. Não tenho computadores, nem quero. Tenho as minhas fichas. Repare que um livro pode dar origem a uma, dez, vinte, cem fichas, e essas fichas são tratadas por ordem alfabética nos respectivos sítios. Se eu quiser saber agora os pintores portugueses do século dezasseis vou ali àquele ficheiro de pintores e tiro quarenta ou cinquenta fichas. Tudo isto é resultado de muitas leituras. Não se pode esquecer que sou um velho: tenho 72 anos de idade. Toda a minha vida foi feita a trabalhar. Nunca tive empregos rendosos, amei sempre muito a cultura e ainda hoje leio e escrevo todos os dias. A minha vida é estudar todos os dias, não sei fazer mais nada.

P.- Qual é a melhor hora do dia para escrever?

R.- Começo a trabalhar às seis da manhã. Tenho o tempo muito ocupado, sou presidente da Academia Portuguesa de História, eleito pelos meus colegas há 25 anos, e não recebo um centavo. Vivo da minha reforma, dos direitos dos meus livros e todos os dias da minha vida são para estudar. Raramente me vêem na cidade.

P.- E nos dias em que não tem inspiração para escrever?

R.- Quando não tenho inspiração para escrever e para criar, leio, faço fichas e medito. Há certos dias em que, para não ficar de braços cruzados, medito e aguardo a hora propícia para escrever. É um pouco como o poeta a aguardar a inspiração para que a poesia aconteça.

P.- Quando não está a escrever lê outros historiadores como António Sérgio, por exemplo?

R.- Conheço a obra toda de António Sérgio que me fascinou nos meus tempos juvenis. Foi uma grande cabeça pensante. Ajudou muitos portugueses a saírem de uma concepção dogmática da história para aquilo a que se chama o criticismo, muito embora o criticismo dele seja idealista, mas, com a formação matemática e filosófica que tinha, António Sérgio abriu muitas veredas na história do pensamento português e de uma maneira que sempre apreciei muito: não dando certezas mas sim hipóteses. Hipóteses para obrigar as pessoas a pensar, a estudar e a abrirem-se a um caminho.

P.- Lê mais autores de direita ou de esquerda?

R.- Essas palavras como esquerdista e direitista deixaram de ter sentido e valor no mundo de hoje. O homem posiciona-se perante os problemas do Mundo, e perante esses problemas ou tem uma concepção universalizante em que todos temos os mesmos direitos e os mesmos deveres ou estabelece uma hierarquia em que ignora uns estratos para privilegiar outros. Eu, como sou um homem humilde, filho do povo, modesto, sempre estive aberto a todas as concepções. O que não quer dizer que com os anos a minha formação não se tenha alterado e muitos dos meus devaneios críticos da juventude não se tenham desvanecido. Não há nada de novo debaixo do sol. Os homens são sempre a mesma matéria e alternam o carácter com a falta dele, a honestidade com a falta dela. Quero dizer, o homem é um conjunto de virtudes e pecados, defeitos e grandezas e é essa aliança que o faz grande.

P.- É um desiludido...

R. - A verdade é que o Mundo não marchou dentro dos valores que sonhámos. Acredito nos valores éticos. Acredito na justiça, na competência, na honradez, na coerência. Continuo a ser um homem respeitador de valores antigos.

P. - Sabendo que o ciclo se repete, que com relativa facilidade se passa de bestial a besta, como é que consegue motivação para continuar o seu trabalho?

R.- É um ideal de vida e na minha vida tive vários. Adorava ópera e música clássica mas perdi o gosto com os anos. A paixão da História tem resistido a tudo, essa nunca me larga. Agora perto do fim da vida surgiu outra paixão: mortos que amei. Vivo numa profunda comunhão de alma com as pessoas que amei: pais, professores, amigos. A morte de um amigo deixa-me sempre consternado. Tenho os meus amigos sempre junto a mim. Há um soneto do Antero de Quental chamado "Com os mortos" que fala disso (levantou-se, foi tirar o livro de uma estante e recitou todo o soneto). "Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,/ arrastados no giro dos tufões/ Levados, como em sonho, entre visões,/ Na fuga, no ruir dos universos..."

"Tenho uma queda para os vencidos. Ficar ao lado dos vencedores é fácil"

P.- Nasceu em Tremês a 8 de Julho de 1925. Pode dizer-se que Santarém é também uma das paixões da sua vida?

R. - Vivi em Santarém até aos dezoito anos. Passei muitos anos no estrangeiro, quinze ao todo, mas vim para Santarém porque é aqui que tenho os meus amigos, os meus mortos, e aqui pratico o culto da História. Tenho a paixão desta terra e vivo numa profunda saudade por aqueles que amei.

P. - Santarém merece esse amor?

R. - Santarém é uma terra que tem um grande sortilégio porque a história, a arte e a natureza estão de mãos dadas. É uma terra que merece ser preservada e acarinhada. Não sabem como adoro andar pelas ruas de Santarém. Mas reconheço que Santarém não acompanhou o progresso de outras cidades e o problema não é de agora, vem do passado. No passado havia liberdade a menos. Quem mandava era o presidente da câmara e mais nada. Agora há liberdade a mais, cada um discute para seu lado e as obras ficam por fazer.

P.- O senhor teve muitas distinções ao longo da sua vida. O Prémio Príncipe das Astúrias, que recebeu em 1985, é o de maior valor?

R.- Fui sempre um amigo da vizinha Espanha, o que não quer dizer que não seja um patriota. Defendo um grande princípio: cada nação na sua casa. Prezo muito a independência de Portugal mas tudo aquilo que possa valorizar a cultura hispânica deve ser feito. Devemos dar os braços à Espanha, não devemos estar de costas voltadas. Devemos pugnar para que a cultura portuguesa e espanhola sejam mais conhecidas em toda a parte. Tenho grandes amigos em Espanha, que me estimam muito. Isso permitiu-me receber várias condecorações espanholas, que nunca pedi e a que nunca concorri. Em 1995 fui surpreendido com a outorga do Prémio Príncipe das Astúrias em Ciências Sociais. Foi no mesmo ano em que o Dr. Mário Soares recebeu o mesmo prémio mas em Cooperação Internacional. Os espanhóis consideram o prémio Príncipe das Astúrias como o Nobel deles. Devo este prémio à amizade e à generosidade dos meus amigos de Espanha.

O que é que representam para si os prémios e as condecorações?

R. - No fundo um prémio é sempre um estímulo. Quando se é jovem é muito importante. Os novos precisam de incentivos. Há vários tipos de prémios: de revelação e de consagração. Mas atenção, os prémios só devem ser dados pela importância da obra a concurso e não por factores como a ideologia ou outros. Se uma pessoa tem valor merece ser incentivado. Ao lado disso há os chamados prémios de consagração, no fim da vida as pessoas consideram e premeiam quem trabalhou. Mas sou contra as condecorações. E recuso-me a receber condecorações no meu país, embora as tenha aceitado noutros países. Mas não me pergunte porquê. (1)

P. - Porque as condecorações estão demasiado banalizadas em Portugal?

R. - Talvez. Foram dadas às centenas e deixaram de me interessar. Mas tenho muita honra em ser português, e sou acima de tudo um patriota, e ai de quem amanhã pusesse em causa a independência do meu país. Mas aceito as condecorações nos outros países porque não as posso recusar já que são os meus amigos a acharem que as mereço. Julgo, também por isso, que sou mais conhecido no estrangeiro do que em Portugal

P.- Está a ser ignorado.

R.- Tenho a consciência de que não faço mal a ninguém. Tive milhares de alunos ao longo de quarenta anos da minha vida de professor e posso dizer que a quase totalidade deles ficaram meus amigos porque fui sempre um professor dialogante. Por razões que radicam em posições políticas que assumi tomei-me um homem maldito em Portugal. Este livro - a História de Portugal de 1926 a 1935 - não teve uma única crítica nos jornais. Porquê? Talvez porque os "media" continuam a seguir velhos hábitos de silenciarem quem não gostam. Em certos "media", não digo todos, segue-se o velho princípio de Decartes: eu não falo de ti, tu não existes.

P.- Está a pagar a factura de ter sido amigo de Marcelo Caetano?

R.- Mas é injusto porque fui coerente. Fui amigo do homem que foi Presidente do Conselho e não o abandonei, quando seria muito fácil agarrar-me ao cavalo do vencedor no dia 26 de Abril. Reconheço a situação actual portuguesa e não a hostilizo. Aconteceu uma revolução e não a hostilizo, o que não quer dizer que esteja em sintonia total com ela. Agora o que estou é em sintonia de alma e coração com um homem que foi meu amigo e que eu seria incapaz de abandonar. Reconheço que tenho uma queda para os vencidos. A minha vida foi sempre estar ao lado dos vencidos porque ficar ao lado dos vencedores é muito fácil.

P.- Não sofre de solidão?

R.- A solidão tem vários sentidos. Para mim solidão não quer dizer isolamento. Nunca estou isolado porque quando estou sozinho tenho os meus livros. Às vezes o isolamento é preciso para escrever e para trabalhar, mas sempre que posso saio desse isolamento para estar com os meus amigos. Gosto muito de conversar, o que não quer dizer que a conversa ocupe todo o meu tempo.

P. - E quando começa a ficar cansado de tanto ler e escrever, sozinho nesta grande biblioteca...

R- Quando estou cansado oiço um disco de música clássica, sento-me numa cadeira a pensar em coisas que me agradam, sobretudo na maneira em como fui capaz de transformar a dor em saudade em relação aos entes queridos e aos amigos que me deixaram, relembrando coisas bonitas da minha vida...

P. - Nunca teve um esgotamento?

R. - Nunca tive coisas dessas. Quando sinto que o organismo está cansado, páro.

P. - Um dia, dois, três... quantos?

R. - Páro o tempo que for necessário. Quero dizer, não ligo ao que estou a fazer quando me canso. Quando tenho um grande desgosto, como a morte de alguém que me é querido, por exemplo, procuro criar em mim fórmulas de sobrevivência afectiva. Os mortos vivem muito comigo. Sonho constantemente com pessoas que morreram. Não sou espírita, note bem, mas os meus sonhos são povoados de lembranças do passado.

P.- Tem medo da morte?

R- Agora já tenho menos medo. Sei que é inevitável e também lhe chamo abençoada, mas só na medida em que me liberta da vida. Quero continuar a viver porque ainda tenho muito para fazer. Gosto muito da vida, mas reconheço que começo a encarar a morte como uma irmã protectora e saudosa. Tenho até um conceito sobre a morte que acho interessante: quando morrer hei-de encontrar junto de mim as almas daqueles que amei, a sorrir e a abraçarem-me.

P - Longe vá o agoiro, mas quando morrer quer ter amigos a discursarem no funeral?

R.- Não, nem pensar, já está escrito e a minha família já sabe. Quando morrer quero ficar aqui na minha biblioteca. Daqui levam-me à Igreja da Piedade, onde me baptizaram, e por quem tenho uma grande devoção. Outra coisa que peço aos meus filhos é que obtenham autorização do presidente da câmara para que o meu funeral se possa fazer pela Rua de S. Nicolau. Quero despedir-me de Santarém, silenciosamente e pela Rua de S. Nicolau, sem qualquer tipo de manifestações.

*Entrevista publicada na edição de 11 de Março de 1998 por Joaquim António Emídio e José do Carmo Francisco

(Texto editado)

(1) Em 2006 foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Santiago de Espada.

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