Crónicas do Brasil | 04-05-2015 18:03

O Duplo Ofício

Vamos tratar do tema o “duplo ofício”, ou, conforme outros, as “duas culturas”. Trata-se, no caso, de exercer a duplicidade de ofícios, a de ser médico e escritor. É comum afirmar-se que os médicos têm pendores para o exercício da literatura. “Veja” – dizem – “quantos médicos se tornaram escritores de sucesso”. Talvez, haja alguma verdade nisso, embora os considerados maiores escritores na história da literatura ocidental, não tenham sido médicos. Desde o antigo Egito, os homens que exerciam a Medicina eram pessoas cultas, mas em geral não estavam incluídos dentre os principais pensadores da época. Tampouco no período greco-romano aparecem ao lado dos que praticavam as “humanidades” nas academias. Somente após a Idade Média, no decorrer do século XVI, é que vamos encontrar os primeiros assim chamados médicos escritores. O mais famoso, reconhecido na posteridade, foi o clérigo e estudioso das literaturas grega e latina François Rabelais (1494-1553). Consta que um seu protetor mandou construir confortável casa onde pôde instalar-se com seus livros e instrumentos cirúrgicos, permitindo assim a melhor prática de seus dois ofícios. Séculos após, os médicos foram mais personagens de Molière e de Voltaire, vítimas de sátiras e críticas, do que autores. Seguem-se Tchekov, Conan Doyle, Somerset Maughan, Cronin, Fernando Namora, Guimarães Rosa, Dyonélio Machado, Aureliano de Figueiredo Pinto, Cyro Martins e o nosso Scliar – só para citar alguns com maior destaque. Uma das explicações para o exercício do duplo ofício deve-se ao fato de que o médico, assim como o escritor, é a mais preciosa testemunha do espetáculo da vida. Assiste e depõe. Pelo contato diário com a doença e pela carga emocional à beira do leito, sente o hálito próximo da morte. São ofícios que se complementam e no dizer de Ernesto Sábato “afundam no sentido geral da existência, numa tentativa dolorosa de chegar até o fundo do mistério”. Jorge Luis Borges (1899-1986), velho e cego, considerou que “o escritor é um bibliotecário imperfeito. Às vezes, frente à impossibilidade de encontrar o livro que procura, escreve outro, e outro, e outro...”. A medicina também exerce e pratica essa tarefa de busca da perfeição, imperceptível e infinita. Scliar exerceu as duas num processo de eterna renovação. Médico e Escritor Membro da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina e da Academia Rio-Grandense de Letras

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