Crónicas do Brasil | 10-09-2015 18:47

João Antônio, simplesmente

João Antônio, simplesmente
No dia em que o conheci, levei para que autografasse todos os livros dele que tinha em casa – Malhação do Judas carioca, Casa de loucos, Dedo-duro, Malagueta, Perus e Bacanaço... – vários, entre os dezessete que publicou, incluindo coletâneas. Na página de rosto de Malhação do Judas carioca, registrou: “A Eliezer Moreira, ofereço esta Malhação do Judas carioca e outras malhações de um tempo ruim. Com um abraço do João Antônio.” A data gravada de seu próprio punho: 24 de setembro de 1996. Foi o ano em que saiu seu último livro – Dama do Encantado, contos-crônicas em que a dama referida é Aracy de Almeida – e também em que ele nos deixou – e assim deixou órfã certa literatura brasileira que – para usar palavra tão dele – era batuta demais. Desde julho, o Rio lhe presta merecida homenagem na exposição “O Rio de Mário, Rubem e João”– os outros dois batutas das artes e letras são Mário Lago e Rubem Braga – no Arte Sesc do Flamengo. Para o leitor português, e outros eventuais, a informação da efeméride é irrelevante – no entanto, é, aqui, um modo de dizer que nela reencontrei o escritor inteiro – em fotografias, anotações, cartas – e nas frases. Sobretudo nelas – saborosas, certeiras, ferinas, cheias de verdade e picardia. Nunca houve paulista mais carioca. Aliás, dos três homenageados, o único carioca de fato, de nascença, é Mário Lago. O seu autorretrato está no texto “Eu mesmo”, logo à entrada: “Sobre o meu nome se poderão ouvir as melhores e as piores coisas. Jamais acreditem. Uns costumam dizer: – ‘Não presta.’ Outros: – ‘É uma boa pessoa.’ Ainda há aqueles que dizem que escrevo bem. Estejam tranquilos, que esses três tipos são inofensivos como passarinhos. Apenas boa gente que fala demais. Agora, há um grupo que se expressa: – ‘É um belo rapaz.’ Quanto a esses eu lhes recomendo à boca pequena: ‘Muito cuidado!’ Ali estão os que fazem elogios tontamente e traição cruamente.” Não há como falar dele honestamente – de sua verve, sua bossa, da linguagem de sua literatura colhida nas ruas, entre jogadores de sinuca, guardadores de carros, tipos populares diversos – a não ser usando seus próprios termos: “Em literatura, jornal, revista, o que for, ainda jogo o jogo limpo, tenho me aguentado na posição que adotei. Escrever é um ato de coragem e humildade. Quando o escriba não tem o que falar, melhor calar. Palavra jogada fora e falador sem decisão, são como diz o povo-povo carioca: se dão mal no mundo. Não estou, pois, para truques.” Usou a expressão “corpo a corpo com a vida” para definir a maneira como fazia – e entendia – a literatura. Não está para truques? – Ora, críticos gabaritados mencionam a “astúcia técnica” de sua linguagem. Recriação tão singular, tão ímpar, do universo das ruas, que chega a soar, às vezes, como transcrição – mas que trabalho por trás daquilo! O truque, quando perfeito demais, simplesmente não deixa transparecer o esforço do mágico. Anotava, em papel de maços de cigarros, guardanapos de bar, frases, ditos, sabedorias – “Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na panela” – que iam depois para os livros. Tinha o vezo de retratar personagens que admirava – três, quatro páginas deliciosas – sem mencionar uma única vez o nome do fulano. No entanto, lá fica o retrato magistral, irretocável. Foi assim num perfil de Darcy Ribeiro (“Olá, professor, há quanto tempo”, em Casa de loucos), que foi visitar quando Darcy voltou do exílio, e de Nelson Rodrigues (“Fera”, em Dama do Encantado). Criador do conto-reportagem – quando repórter da revista Realidade, que marcou época – e da expressão “imprensa nanica” – em referência carinhosa aos tabloides que proliferavam durante a ditadura militar. Com raízes em Portugal – “Nasci pobre, filho de um transmontano emigrado e de uma mulata (naquele tempo) fluminense” –, a família se estabeleceu em Presidente Altino (SP), onde João nasceu em 1937. Depois de ganhar dois Jabutis simultâneos, em 1963, com Malagueta, Perus e Bacanaço, seu primeiro livro, veio para o Rio. Virou carioca – “Saibam que, de todos os meus amores, o mais forte, irreversível, chamamento, sensualidade, bem-querer, ternura e paixão, ir e vir e voltar e ficar – é esta cidade mesma, o Rio que eu escolhi e que, apesar de todos os meus defeitos, não poucos, me aceita”. Aceita e agradece, João.

Mais Notícias

    A carregar...
    Logo: Mirante TV
    mais vídeos
    mais fotogalerias

    Edição Semanal

    Edição nº 1660
    17-04-2024
    Capa Vale Tejo
    Edição nº 1660
    17-04-2024
    Capa Lezíria/Médio Tejo