Crónicas do Brasil | 20-02-2016 12:07

Criador de monstros

A literatura tem se tornado cada vez mais um divertimento, ou um modismo. Hoje, no metrô do Rio, apesar do poder de absorção dos telefones celulares sobre corações e mentes, não é tão raro ver um leitor solitário com um livro aberto.

A literatura tem se tornado cada vez mais um divertimento, ou um modismo. Hoje, no metrô do Rio, apesar do poder de absorção dos telefones celulares sobre corações e mentes, não é tão raro ver um leitor solitário com um livro aberto. Mas, se olhamos de perto, é um livro da moda, de um autor da moda, quando não de autoajuda. A literatura mesma, com maiúscula – aquela que, nos séculos 19 e 20, ergueu catedrais como “A comédia humana”, “Crime e castigo”, “Os Maias”, “Guerra e paz”, “A montanha mágica”, “Os sertões” e “Grande sertão: veredas” –, esta parece em franca extinção. Pode parecer assustador, mas é verdade.

Não há aqui espaço para discutir as causas de um fenômeno que, aliás, atinge outras tantas formas de arte – sobretudo as artes narrativas. O cinema, em especial o cinemão mainstream, também caiu na pura fantasia, construída a golpes de efeitos digitais. Aboliu-se a realidade – vale dizer, aboliu-se a vida em favor do deslumbramento visual proporcionado pelas imagens processadas em computador.

Quanto ao consumo de livros, pelas razões já referidas tenho preferido, cada vez mais, os sebos às livrarias, embora não deixe de estar atento às novidade que possam valer a pena. Sim, porque é absolutamente imperdoável perder tempo com o que não presta. Afinal, a vida é curta demais para se ler tudo o que a vontade nos pede e que a profissão obriga. Assim é que, ultimamente, depois de um legítimo Joseph Conrad – o monumental “Nostromo”, de quase 500 páginas na edição traduzida – passei a outro livro não menos majestoso – “Os miseráveis”, de Victor Hugo. O autor tem sido chamado de monstro. Pois bem. Lendo-o descubro que não foi só um monstro – foi um criador de monstros.

Ora, esta é mais uma das muitas vantagens de se ler esses demiurgos, autores que não somente souberam escrever bem: neles, e através deles, se descobre que foram os mestres e criadores dos gigantes que os sucederam. Assim, nas páginas de Victor Hugo, descobrimos a fonte onde beberam seus contemporâneos ou pósteros mundo afora, como Zola, Dostoievski, Marcel Proust, Tolstói e até mesmo o nosso bom e velho Machado de Assis – que, por sinal, traduziu a primeira edição brasileira de “Os trabalhadores do mar”. Em certa altura, ao falar dos remorsos do ladrão Jean Valjean, Victor Hugo escreve: “Não se pode impedir o pensamento de martelar na mesma ideia, como o mar de voltar sempre às areias da praia. Para o marinheiro, a isto se chama maré; para o culpado, se chama remorso. Deus subleva a alma do mesmo modo que o oceano.” Ora, que leitor de Machado de Assis – que foi um mestre na arte da digressão – não vê aí um dos traços fundamentais do seu estilo?

Victor Hugo pode até ser considerado – muito antes de Dostoievski com seu “Crime e castigo”, ou de Edgar Alan Poe com “Os crimes da Rua Morgue” – o precursor do romance policial, pela criação de um magnífico personagem, o incorruptível inspetor Javert, que não dá descanso a Jean Valjean. Não bastasse tudo isso, o que faz de “Os miseráveis” uma extraordinária obra-prima de todos os tempos, e de Victor Hugo um monstro criador de monstros, é o fato de se tratar de um romance dentro de romances – um fabuloso encadeamento de histórias, tão próprias ao gênero folhetinesco que influenciou a literatura do século 19 e que alimenta e sobrevive, até hoje, nas narrativas televisivas e nas séries cinematográficas. Uma prova de que, antes do ilusionismo digital, o que permanece de verdade é a recriação da vida.

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