Crónicas do Brasil | 03-03-2016 11:30

Literatura portuguesa fora do currículo escolar no Brasil. Pode isso?

Permanece até o dia 15 de março, no site do Ministério da Educação e Cultura, para consulta pública e contribuição de professores e cidadãos, a página relativa à Base Nacional Curricular Comum – BNCC, que estabelece diretrizes para o ensino básico e médio nas escolas públicas brasileiras.

Permanece até o dia 15 de março, no site do Ministério da Educação e Cultura, para consulta pública e contribuição de professores e cidadãos, a página relativa à Base Nacional Curricular Comum – BNCC, que estabelece diretrizes para o ensino básico e médio nas escolas públicas brasileiras. Entre outras questões que têm despertado controvérsia, a BNCC prevê, segundo se deduz do texto, o fim da obrigatoriedade do ensino de literatura portuguesa no ensino médio. No primeiro ano dessa fase escolar o texto propõe “ler produções literárias de autores da Literatura Brasileira Contemporânea”; no segundo ano, “ler produções literárias de autores da literatura brasileira dos séculos XX e XIX, em diálogo com obras contemporâneas”; e no terceiro ano, “ler produções literárias de autores da literatura brasileira dos séculos XVIII, XVII e XVI, em diálogo com obras contemporâneas.” Em todos os casos o texto recomenda que tal leitura e análise devem se fazer “percebendo a literatura como produção historicamente situada e, ainda assim, atemporal e universal.” Pelo que se deduz do critério cronológico adotado, “contemporânea” é a literatura que não se inclui naquela dos séculos XX, XIX, XVIII e XVII, logo, “contemporânea” é apenas a do século XXI, ou seja, uma literatura com apenas 16 anos de vida! E essa produção recentíssima é, pelo visto, a que ganha maior peso, visto que se parte dela para, numa análise retrospectiva, se chegar às literaturas dos séculos anteriores. Essa inversão na ordem cronológica permite que o aluno seja apresentado primeiramente aos autores do momento, cuja obra ainda não foi provada e reconhecida pelo tempo, para só depois conhecer autores dos séculos precedentes. As outras duas únicas denominações mencionadas no documento são a “literatura indígena” e a “literatura africana de língua portuguesa”, neste tópico: “Interpretar e analisar obras africanas de língua portuguesa, bem como a literatura indígena, reconhecendo a literatura como lugar de encontro de multiculturalidades.” Ora, para que a literatura brasileira, ou qualquer outra, seja reconhecida como “lugar de encontro de muliculturalidades” (que linguagem pomposa!) é preciso infinitamente mais do que acrescentar-lhe duas outras. O viés ideológico e o ranço doutrinário da BNCC, nesse tópico, são indisfarçáveis e de um reducionismo ridículo. Na verdade, o que se pode deduzir do texto é algo mais calamitoso do que simplesmente pôr de escanteio a literatura portuguesa. Os professores de ensino médio – aquela fase do ensino em que os alunos costumam decidir suas vocações e seu futuro –, podem se desobrigar de incluir em seus programas de ensino também as literaturas francesa, inglesa, norte-americana e russa – ou seja, nada de Shakespeare, Camões, Dostoievski, Kafka, Fernando Pessoa, Faulkner, Camus e Hemingway, por exemplo. Mas isso nem chega a ser o mais grave, quando se trata de definir critérios para o ensino de literatura, uma vez que nenhum professor sensato deixaria de considerar a interdependência congênita das literaturas através das culturas e dos tempos. O pior é a BNCC priorizar a análise linguística, o comparativismo, o historicismo e outras demais “ciências” como parâmetros de estudo, quando deveria priorizar, antes de tudo, o estímulo à leitura. A leitura – prática e gosto – é a pedra de toque, é a condição sem a qual todo o resto será inútil. E o que o ensino no Brasil tem feito desde sempre, no que tange à literatura, é produzir gerações de alunos avessos a ler literatura. É o que precisa ser corrigido. Ora, o estímulo à leitura deve começar cedo, quando a criança sequer aprendeu a ler direito. Isto começa quando um adulto, professor ou não, abre um livro diante dela ou da turma e lê uma história. Assim ela descobre estar diante de um objeto mágico, quer dizer, algo que lhe fala à imaginação antes de começar a lhe falar ao intelecto. O intelecto virá depois, muito depois. E o que pode a escola ensinar, em matéria de literatura, que uma vida de leitura prazerosa já não tenha antes ensinado?

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