Crónicas do Brasil | 25-03-2016 11:49

O tesouro de casa madre

O título aí em cima e uma referência a O tesouro de Sierra Madre, filme de John Houston estrelado por Humphey Bogart (em Portugal: O tesouro da Sierra Madre).

O título aí em cima e uma referência a O tesouro de Sierra Madre, filme de John Houston estrelado por Humphey Bogart (em Portugal: O tesouro da Sierra Madre). Faroeste clássico, ele não tem nada a ver com o assunto da crônica a não ser pelo fato de também aqui haver um tesouro em jogo. Foi o bastante para associarmos o tesouro da película ao desta crônica, substituindo a sierra madre pela casa madre – a casa materna, naturalmente, em Januária (Minas Gerais), de onde este cronista saiu aos vinte e poucos anos de idade.

É possível que isto, matéria de memória, pudesse render mais que um texto breve. O menino e, depois, o adolescente que viveu naquela casa – síntese ideal das outras duas ou três casas anteriores onde a família morou – estava, naquela idade, inteiramente convencido de que seria pintor. Não tendo na cidade escola de arte, teve de se virar como pôde, aprendendo com os chamados grandes mestres, em fascículos e livros de arte. Para treinar o traço e aprender um pouco de composição e anatomia, desenhava tudo o que o impressionava – as figuras dantescas de Michelangelo na Capela Sistina, o David, a Mona Lisa, retratos de damas por Thomas Gainsborough e Ingres, telas líricas do maneirista François Boucher, ou quadros ensolarados de temas populares do espanhol Bartolomé Esteban Murillo.

O menino – e, depois, o adolescente e o homem feito – não ignorava estar em marcha, havia mais de cem anos, mais uma das ininterruptas revoluções na arte: conhecia os impressionistas, os cubistas, admirava Picasso etc. Todavia, por alguma razão, simples intuição talvez, ele achava que devia começar do começo: primeiro aprender a desenhar, tentar construir sua catedralzinha para, se fosse o caso, a demolir depois. Essa incursão pela arte do passado e de um mundo que não era o seu, não significava preferência por uma escola ou tendência: ele apenas usava como referência ou como modelo o que tinha mais à mão. Tampouco significava alheamento à realidade local, com seus cenários e personagens característicos: o sonhador-aprendiz saía, muitas vezes, com o seu bloco, um ou dois lápis 6b em punho, e desenhava o que lhe chamava a atenção na cidade e arredores – em especial, pescadores e mulheres que trabalham pela beira do rio São Francisco.

Só deixou a casa madre muito tarde, aos 23 anos de idade, quando já havia produzido considerável quantidade de desenhos próprios e uma infinidade de cópias. Tampouco havia no comércio local onde adquirir uma pasta para guardar adequadamente o acervo, onde havia desenhos de grandes dimensões. Então fez ele mesmo uma enorme pasta de papelão forrado com napa impermeável, costurada com agulha de fechar saco de estopa.

Quando você se dá conta, o tempo passou. Ao longo de mais de trinta anos de visitas periódicas a casa madre, viu – e quase nunca abriu – a pasta guardada sobre o armário no quarto onde dormia. Sim, a pasta, carinhosamente conservada pela mãe, foi aberta pouquíssimas vezes por uma razão muito simples: porque doía. Assim foi, assim será. Quando você abre os olhos, a guardiã da pasta já se foi, partiu ao encontro de Deus, e a casa madre, antes cheia de vida e de risos, está vazia. Mais do que isto, virou espólio, e será posta à venda. A uma irmã, que passava pela cidade, ele manda um apelo por WhatZap – que traga sua pasta, pelo amor de Deus. Mas o carro já vinha cheio, e a pasta é grande e pesada. Foi quando se lembrou do clássico de John Houston. Ele ainda não sabia, mas a pasta se tornou, de repente, um tesouro à espera de resgate na casa madre. Pouco importa se os desenhos têm ou não qualidade, para ele são um valioso tesouro da memória à espera de um lugar na sua posteridade provisória.

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