Crónicas do Brasil | 04-04-2020 11:12

Memória da terra em movimento

Memória da terra em movimento

Experiências de viagem pelo interior do Brasil, visitando lugares distantes, e convivendo com os nativos que ficam na nossa lembrança pela força do olhar e as cores da roupa.

Fiz uma foto em movimento. O ônibus balançava através dos campos do Cerrado baiano; ao longe, a cadeia de morros da Chapada Diamantina. Pensei que já os havia deixado para trás: ingênuo forasteiro. Estava há pelo menos três horas naquela viagem de visões, e ainda avistava os vales nos quais havia caminhado alguns dias antes. Ao rumar para o sul, entrávamos em todas as cidades que margeiam a chapada, buscando e largando passageiros. Demoramos quase dez horas para percorrer menos de quatrocentos quilômetros.

A cada nova encruzilhada, tinha a certeza de que novamente enveredaríamos rumo às imponentes montanhas, que semelhavam paragens divinas, abruptamente suspensas, como que indiferentes ao mundo exterior, altivas em seus próprios recôncavos e labirintos. Nas cidades, as poltronas escasseavam, preenchidas com os moradores nativos em sua movimentação rotineira. Viajavam poucos quilômetros, levavam plantas e bolsas, alguns saltavam em pontos no meio da estrada, outros em cidades vizinhas.

É peculiar o universo das viagens: paisagem em renovação e narração alheia. Visões próximas às vezes também chamam a atenção: olhadelas ao rosto da companhia efêmera de poltrona: mulher forte com seus sessenta anos de sertão. Proseava com seu grupo de quatro ou cinco, falavam mal de alguém; compraram alguns picolés. Perguntei a cidade em que estávamos, ela me disse, não lembro o nome, lembro de seu rosto. A paisagem circulava.

Surpreendeu-me o estado de conservação do Cerrado ao longo do trajeto: desde Seabra, passamos por Guiné, Mucugê, Ibicoara, Barra da Estiva, entre outras que não saberei citar, e o Cerrado dominava quase por completo a paisagem. É evidente que o alcance da visão de um tripulante rodoviário é limitadíssima, mas é também certa a validade de uma amostra descompromissada como esta: ao seguir viagem por Minas Gerais, no dia seguinte, o cenário é outro: a degradação da Mata Atlântica é alarmante. Na verdade, não se veem senão vestígios do bioma quase extinto; a amplidão é verde clara, de capim viçoso, pontilhado por manchas do verde fecundo da floresta tropical que ainda insiste em povoar pequenas áreas.

A situação só muda novamente no estado do Rio de Janeiro, já próximo à capital. Os picos da Serra dos Órgãos se avolumam vigorosos, a floresta é densa e compacta, os paredões de granito surgem colossais em meio à névoa branda. Descemos em direção à Guanabara, estou indo para casa.

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