Um inédito de Ariano Suassuna

O Sedutor do Sertão assim nos convida à visão de um Brasil profundo, com a nitidez da melhor arte do vitral, em cenas divertidíssimas que acontecem ao livre gosto de suas criaturas: personagens moldados na mais sutil alquimia entre comicidade e drama, com a marca de fábrica de um estilo único, o de Ariano Suassuna.
Ariano Suassuna dedicou O Sedutor do Sertão (Nova Fronteira, 2020) à memória de Euclydes da Cunha. Emoldurado pela emblemática dedicatória, o romance enfatiza o viés político que o motivou disfarçado logo em seguida pelo herói pícaro e burlesco que o protagoniza. É dado aparentemente banal mas decisivo, como qualquer detalhe numa grande obra de arte. O riso afinal é um lenitivo frente ao pasto incendiado do Brasil de 1930, em muitos aspectos semelhante ao Brasil que conhecemos de outras épocas e mesmo ao Brasil de agora, com suas contradições e espúrios extremismos.
E o nome de Euclydes grafado com y foi maneira que Ariano encontrou de respeitar e admirar ainda mais o autor de Os Sertões – essa obra-prima que, para ele, é “a mais decisiva de todas as obras para a revelação do Brasil a si mesmo”. Porque a dedicatória vale por um manifesto nesse romance que permaneceu inédito desde 1966, quando foi escrito em apenas três semanas. E a informação de que Euclydes é talvez a maior influência literária na totalidade da obra de Ariano devemos a Carlos Newton Júnior, autor do prefácio. Pois O Sedutor do Sertão é livro que também revela o Brasil a si mesmo. Porém, ao contrário do livro de Euclydes, a veia cômica é preponderante na história de Ariano na qual um quase anti-herói construído com muito humor, Malaquias Pavão, que viverá igualmente no Romance d’A Pedra do Reino, conquista seu espaço por graça e artes de um narrador gaiato – narrador que pouco interfere na atuação de seus personagens.
Euclydiano sem deixar de ser cervantino em muitos de seus andamentos (quem leu o Quixote vai logo identificar semelhanças), Ariano se serve ainda do cordel nordestino na pontuação do enredo. Enredo farto de densa matéria mítica, herança por demais conhecida e de amplo domínio de Ariano, que soube explorá-la sempre, com a maior sabedoria e beleza, em muitas outras histórias. O Sedutor do Sertão assim nos convida à visão de um Brasil profundo, com a nitidez da melhor arte do vitral, em cenas divertidíssimas que acontecem ao livre gosto de suas criaturas: personagens moldados na mais sutil alquimia entre comicidade e drama, com a marca de fábrica de um estilo único, o de Ariano Suassuna.