Crónicas do Brasil | 23-11-2022 18:00

O crepúsculo dos ídolos

Vinicius Todeschini

O Brasil é assim, um país que não cultiva a memória, mas tem veia poética. País continente com diversas alquimias musicais e poéticas brotando quase por mágica, de onde só parece haver miséria.

Milton Nascimento fez o seu último show aos 80 anos de idade, depois de 60 anos de carreira. Diabético e com sérios problemas cardiovasculares, ele ainda sofreu o baque da perda da amiga e colega de longa data, Gal Costa, que morreu aos 77 anos de causa não revelada pela família. Chegaram a combinar fazer um filho, mas a vida os levou pelos caminhos de grandes realizações artísticas, os dois se transformaram em grandes ídolos e fizeram muito sucesso. Milton conseguiu mais repercussão internacional pela originalidade das suas criações e pela voz, que, em seu auge, seria a voz de Deus, segundo a maior cantora do Brasil de todos os tempos, Elis Regina, morta tragicamente aos 36 anos de idade, em 1982.

Diferente deles, Rolando Boldrin, que faleceu no mesmo dia que Gal Costa, aos 86 anos, teve uma trajetória bem diferente. Começou a sua carreira como ator, mas sempre foi músico e um pesquisador profundo da música popular brasileira, principalmente a de origem rural, chamada de caipira. O programa Som Brasil, criado por ele, foi um marco na cultura brasileira e estreou em 1981, pela Rede Globo de Televisão, o programa mudou de nome até chegar ao seu formato final, na TV Cultura de São Paulo, com o nome de “Senhor Brasil”. Sua contribuição é tremenda e subavaliada, pois resgatou inúmeros artistas, já sem palco para se apresentar, e, também revelou novos, que, aliás, tinham o mesmo problema dos primeiros, não tinham palco se não pelos mesmos motivos, mas pela mesma estrutura que isola os mais velhos e sacrifica os mais novos. A música realmente popular no país não é a música que o representa no exterior. Aqui predominam os hibridismos do sertanejo pop; mistura de bolero mexicano com batidões e o funk carioca. O tempo da canção e da melodia com harmonias cheias de invenções passou...

O Brasil é assim, um país que não cultiva a memória, mas tem veia poética. País continente com diversas alquimias musicais e poéticas brotando quase por mágica, de onde só parece haver miséria. Não se deveria falar em miséria por aqui e sim em misérias, porque o Brasil é muito diverso, inclusive nesse aspecto. Para os artistas sempre foi muito mais difícil por aqui, do que normalmente é em qualquer lugar. Vida de artista não é fácil e muitos, apesar da vocação e do talento, optaram por outra profissão para poderem se sustentar e continuar criando a sua obra, sem terem de tocar música ruim, em bares e bailes da vida ou sofrerem humilhações, mendigando espaço para a sua música em lugares dominados –apenas- por interesses econômicos. Muitos artistas, por isso mesmo, só intensificaram as suas carreiras depois que garantiram alguma estabilidade financeira e, talvez, isso influencie no fato de estar ficando cada vez mais difícil surgir alguma coisa realmente original.

Os músicos e compositores que nos comoveram e nos influenciaram com a sua criação original, de estética única em sons, cores e poesia, em grande já desapareceram e os que beberam nessa fonte elaborada por eles estão chegando ao crepúsculo. Elis Regina, Clara Nunes, Nara Leão, assim como Garoto, violonista e compositor excepcional, e Sidney Miller, outro grande compositor, foram artistas que morreram muito cedo, outros foram na meia idade, mas houve também os longevos, que conseguiram avançar até os 80 anos ou mais. O obituário dos artistas é repleto de histórias comoventes, onde o amor à arte superou todas as outras faltas. Estamos cada dia mais velhos e a esperança ainda habita nossos corações, repletos de versos e de músicas criadas por tantos artistas maravilhosos, mesmo com o desaparecimento de muitos deles a sua arte permanece. Nem mesmo o fato das pessoas muitas vezes não saberem a autoria das canções e a maioria das rádios não declararem o nome dos compositores, nem mesmo isso tira o brilho da criação e daquele momento mágico da inspiração, sem dor e sem remorso, poeta.

Vinicius Todeschini 22/11/2022

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