Crónicas do Brasil | 06-02-2023 10:14

Bem Brasil

Vinicius Todeschini

O projeto de não demarcar terras no Brasil e torná-las cultiváveis é muito antigo e mesmo com a garantia constitucional, escrita nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, estes direitos sempre foram afrontados pelos grileiros de terras e pelo garimpo ilegal. O argumento mais usado contra as demarcações é sempre o mesmo: ‘terra demais para poucos índios’.

Tim Maia se tornou conhecido pela sua qualidade musical e pela sua irreverência desenfreada movida a drogas e álcool. Ele partiu em 1998, mas sua obra continua viva, no entanto, além de compositor era um grande frasista e umas das frases mais famosas creditadas a ele é sobre o país. “O Brasil não é um país sério, porque aqui o traficante é viciado, prostituta se apaixona e cafetão tem ciúmes”. Nada mais carioca que este tipo de verve que sacaneia o país e a si próprio, por decorrência. Frases de efeito causam impacto, mas também empobrecem o debate, mas isso é bem Brasil...

Esta fama que o país adquiriu de não ser sério se espalhou pelo mundo, mas a sua origem é difusa. O presidente francês, Charles de Gaulle, levou a fama de ter dito esta frase, porém, o diplomata Carlos Alves de Souza, que servia na França, à época, se intitula o autor da frase. Ele afirmou, em 1979, que a autoria era sua e a teria dito, informalmente, ao jornalista brasileiro, Luiz Edgar de Andrade, correspondente do Jornal do Brasil em Paris. O que é importante aqui não é a autoria, mas o impacto cultural que ela causa até hoje, assumindo um papel de paradigma nacional e reforçando o “complexo de vira-lata”, conceito criado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues, depois da derrota da seleção brasileira para o Uruguai, na Copa do Mundo de 1950, para explicar o complexo de inferioridade dos brasileiros.

É preciso da cegueira para enxergar os Brasis que nos enevoam a mente e criam devaneios metamorfoseados em países que se chocam. Não há como entender este país sem entender o efeito dessas sentenças emblemáticas, como, por exemplo, a frase que é título do livro de Stefan Zweig, “Brasil, o país do futuro”. A ideia de inadequação que perpassa a alma brasileira continua por conta dessa frase, porque nunca chegamos ao ponto de sermos o país do presente e seguimos presos em um limbo, onde o presente não é presentificado, nem o futuro atingido.

Os últimos quatro anos arrancaram o país do seu berço esplêndido e Bolsonaro é, apenas, o catalisador de tudo isso, porque em sua persona exibe tudo que o país tem de pior e em sua encenação permanente estimula delírios. Ele tentou retomar o projeto da ditadura (1964-1985) de aculturação dos povos originários e o impacto do genocídio yanomami -que não será apagado tão cedo da memória brasileira- é o retrato disto. É dele a frase dita em abril de 1998, quando era deputado federal: “Até vale uma observação neste momento: realmente a Cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”. Claro que ele faz uma observação em seguida para evitar problemas legais; “se bem que não prego que façam o mesmo com os índios brasileiros”. Bolsonaro sempre foi o mesmo!

O projeto de não demarcar terras no Brasil e torná-las cultiváveis é muito antigo e mesmo com a garantia constitucional, escrita nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, estes direitos sempre foram afrontados pelos grileiros de terras e pelo garimpo ilegal. O argumento mais usado contra as demarcações é sempre o mesmo: ‘terra demais para poucos índios’. Na verdade, a área ocupada pelos indígenas é garantia de floresta preservada, pois o estilo de vida mantido por estes povos não devasta, nem polui e mantém o equilíbrio ambiental. Um exemplo de injustiça com os povos originários ocorre aqui no Rio Grande do Sul, onde o Parque Estadual do Itapuã, que pelos estudos da Funai pertence aos guaranis, é explorado pelo governo estadual. Não haverá trégua nesta luta, porque a extrema-direita brasileira está permanente mobilizada e financiada pelos que têm interesse direto nas terras indígenas.

Existem grandes frasistas em nossa história, como o jornalista Apparício Torelly, que se autobatizou Barão de Itararé, é dele, por exemplo, uma frase muito repetida por aqui: “De onde menos se espera, daí é que não sai nada”. Todas essas frases, porém, exibem o cinismo de quem desacredita na sociedade. É como se aqui, em nome de interesses pessoais, a maioria se corrompesse e vivesse tão somente para si, abdicando do pensamento crítico, mas o que está acontecendo no país não é mais possível ignorar, e aquele humor à brasileira, de fazer piada com a própria desgraça, perdeu a graça.

Esta semana surgiram mais avanços nas investigações, da tentativa de golpe do dia 8 de janeiro, com a prisão do ex-deputado federal Daniel Silveira e o depoimento do senador Marco do Val. O depoimento do senador, muito embora capcioso, coloca Bolsonaro, refugiado nos EUA, no epicentro do golpe. A ideia era criar uma armadilha para Alexandre de Moraes, mas falhou. “Isso aqui, ô, ô é um pouquinho de Brasil iaiá este Brasil que canta e é feliz, feliz, feliz”. Assim compôs Ary Barroso, um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos e, também, mais um brasileiro que jamais foi ao Brasil.

Vinicius Todeschini 03-02-2023

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