Crónicas do Brasil | 28-02-2023 20:02

Trágicos Trópicos

Vinicius Todeschini

Os filhos despatriados constroem suas casas em locais impróprios, justamente em locais de risco, onde ninguém, que tenha escolha, construiria. Nos trágicos trópicos é assim: apenas duas estações e não quatro, como em outras regiões do planeta.

Imaginem uma família em que alguns filhos são negligenciados pelos pais, como se um oráculo previsse que eles seriam a sua desgraça, aos moldes do Oráculo de Delfos na profecia para Laio sobre Édipo. Imaginem estes filhos, totalmente, abandonados pelos pais, crescendo subnutridos pelas ruas, sem acesso a uma moradia digna e aos estudos para a sua formação. Imaginem mais: os filhos amadurecendo sem reconhecimento familiar; despatriados, miseráveis e ignorantes. Certamente não serão mais uma ameaça à supremacia dos pais e, principalmente, dos filhos eleitos, os príncipes herdeiros, mas, apenas, mais uma sombra no carma desses pais. Carma, aliás, que eles jamais acreditaram que exista, pois são agnósticos, muito embora posem de religiosos para manter a aparência. A religião para eles é a argamassa necessária que mantém a sociedade coesa, mesmo que profundamente hipócrita, onde a maioria não pratica o amor vicário prescrito por Jesus e sobre o qual construíram uma religião a despeito dele, que, por fim, torna milionários muitos dos que a usam em proveito próprio sem nunca a terem vivenciado.
Os filhos despatriados constroem suas casas em locais impróprios, justamente em locais de risco, onde ninguém, que tenha escolha, construiria. Nos trágicos trópicos é assim: apenas duas estações e não quatro, como em outras regiões do planeta. Uma estação menos quente e menos chuvosa que chamam de inverno e outra mais quente e mais chuvosa que, pela mesma razão, convencionou-se chamar de verão. Chuvas concentradas em uma época só; “chuvas de verão” costumam dizer, porque chove torrencialmente todos os dias e em alguns anos chove além da conta, muito embora, estas chuvas, sejam sempre intensas. As tragédias que arrastam construções e dizimam vidas acontecem todos os anos, em alguns anos mais e em outros menos, mas a diferença entre uma vida perdida e muitas vidas perdidas parece seguir aquela velha lógica stalinista, “a morte de um homem é uma tragédia; a de milhões, uma estatística”. Os políticos brasileiros se sucedem no poder, mas as tragédias, como a que aconteceu na madrugada do dia 19 deste mês em São Sebastião, litoral de São Paulo, continuam arrastando tudo por água abaixo.
O presidente Lula não se furtou a comparecer à região, diferente de Bolsonaro que, em outra tragédia semelhante na Bahia, não quis interromper as suas férias no litoral de Santa Catarina. Lula se reuniu em São Sebastião com o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o prefeito da cidade, Felipe Augusto. Todos de partidos diferentes, mas todos com o semblante carregado de preocupação. Preocupação, aliás, que nunca existiu para criar planos e projetos exequíveis de prevenção e construção de moradias para substituir aquelas em áreas condenadas a novas tragédias, que, inevitavelmente, voltam a acontecer, ano após ano. Lula discursou, mas o seu discurso soou um pouco como comício, falando de “união entre os diferentes”, soou como cooptação e não há mais espaço para isso em situações assim. Falar e falar e prometer, recorrentemente, não serva para mais nada quando o povo desacredita, porque sabe que são discursos de ocasião e que não mudará a dura realidade dos filhos abandonados pelos pátrios e mátrios poderes de pais patrões que elegem poucos como filhos diletos e “despatriam” os outros.
Por fim, os filhos despatriados seguem o seu rumo e acabam pelas ruas das grandes cidades como pedintes nos sinais, morando em sub-habitações ou debaixo das marquises. São comparados pelas elites sectárias com outros povos que alcançaram um nível social aceitável depois de inúmeros conflitos em seus próprios países, através de milênios. A comparação é descabida, mas continua. Injustiçados e sem voz ativa são reificados em discursos acadêmicos, onde teses e dissertações tentam ressignificar velhas palavras para algo descentrado do mundo das palavras e vivido pelos que nunca conheceram nada, além do verbo que encarnam. Filhos da mãe, eles repetem os primórdios da humanidade onde o matriarcado era uma imposição da natureza crua. O resultado não poderia ser pior para o país, mas, no entanto, não há como negar a perpetuidade deste processo no Brasil.
Em algum tempo o próprio gozo nos corpos dos escravos dentro do “Círculo dos Escolhidos” cessará, por exaustão do gozo em si. Outros corpos ocuparão o espaço daqueles, coisificados pelas perversões desenvolvidas ao longo de séculos de ócio e de tédio dos donos do mundo, mas ignorantes do seu próprio desejo. Quando não houver mais nenhuma casa construída em encosta e destinada a ser arrastada pelas chuvas de verão dos trágicos trópicos brasileiros, talvez se possa perdoar o imperdoável e aprender que o destino não estava escrito, mas os caminhantes acreditaram que sim.


Vinicius Todeschini 24-02-2023

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