Crónicas do Brasil | 03-03-2023 22:14

Trabalho Escravo no Sul do Brasil

Vinicius Todeschini

Para entender o racismo estrutural brasileiro é preciso compreender como esta terra foi colonizada ( : ) O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, mas o racismo já estava instaurado aqui desde a sua colonização, a contribuição dos povos que vieram depois, para esta mazela social, apenas contextualizaram, em cada região, as formas que este racismo se estruturou.

A denúncia de trabalho escravo na serra gaúcha, que impactou o noticiário do país, aconteceu em uma região próspera e a com a maior renda per capita do estado do Rio Grande do Sul, justamente a região da produção vinícola, onde os espumantes produzidos ganharam fama mundial pela alta qualidade. O estado teve vários fluxos de colonização e os principais foram, pela ordem: portugueses, alemães e italianos. Os alemães chegaram por aqui no início do século XIX e povoaram os vales do estado, mas os italianos, que chegaram a partir de 1870, tiveram que desbravar a região serrana. Esta região era habitada por tribos caingangues, que foram dizimados pelos bugreiros (nome das milícias encarregadas pelo extermínio dos indígenas). O projeto do Império do Brasil era colonizar o país com a população europeia excedente e substituir à mão de obra dos escravos recém-libertos, porque os iluministas luso-brasileiros acreditavam que à mão de obra dos europeus era superior. Na Itália, a luta de mais de 20 anos para a unificação do país e as péssimas condições econômicas foram as causas mais importantes da emigração e cerca de 7 milhões de italianos deixaram o país, entre 1880 e 1920, rumo ao Brasil.

Os primeiros imigrantes italianos enfrentaram muitas mais dificuldades, porque pouco do prometido pelo Império brasileiro foi realmente cumprido. Subiram a serra através trilhas e tinham que deixar a família em barracões e abrir picadas para chegar às terras prometidas. A região íngreme dificultou enormemente o trabalho de assentamento. Os homens se juntavam em pequenos grupos para construir a moradia e plantar uma pequena roça de milho para só depois buscarem a família. Depois de muita luta, muito sofrimento e trabalho extenuante prosperaram, mas as grandes dificuldades passadas criaram uma memória que persiste até os dias atuais, dando base a valores e conceitos sobre trabalho e família que permanecem estratificados na cultura dessa região. Os imigrantes tendem a conservar valores que já se perderam em seus países de origem, mas por aqui eles permanecem congelados no tempo.

Para entender o racismo estrutural brasileiro é preciso compreender como esta terra foi colonizada. A invasão da Europa pelos mouros deixou marcas em vários países e na Itália começou pela Sicília. Muito embora existam divergências entre os historiadores, os mouros lá permaneceram de 50 a 150 anos. A tragédia de uma invasão estrangeira deixa sequelas indeléveis e o ódio aos invasores permanece, sendo passado através de gerações e é sobre esse ódio que os racismos e as xenofobias se desenvolvem e criam raízes. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, mas o racismo já estava instaurado aqui desde a sua colonização, a contribuição dos povos que vieram depois, para esta mazela social, apenas contextualizaram, em cada região, as formas que este racismo se estruturou.

As vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi negaram qualquer participação e culparam à empresa terceirizada para fazer o trabalho de colheita. O trabalho acontecia em turnos de 15 horas, sem intervalos, com alojamentos sem as mínimas condições e obrigação de fazer compras superfaturadas em um mercado da empresa contratante. Os trabalhadores gaúchos relataram ao Ministério Público do Trabalho que, apenas os baianos eram submetidos à tortura, choques elétricos e espancamento. As vinícolas, mesmo alegando não estarem diretamente envolvidas são corresponsáveis por tudo, mas o vereador Sandro Fantinel do “Patriotas” em pronunciamento, na Câmara de Vereadores de Caxias do Sul, defendeu às empresas e culpou às vítimas pelo ocorrido. Afirmou que os empresários não devem mais contratar “o povo lá de cima”, se referindo aos nordestinos, e continuou o discurso dizendo que a única cultura que os baianos conhecem é “tocar tambor na beira da praia” e exortou os empresários a só contratarem os argentinos, que seriam limpos e trabalhadores. O vereador foi expulso do seu partido e a Câmara de Vereadores de Caxias do Sul iniciou o processo de cassação, mas ele responderá a outros processos. Diante da repercussão, o político publicou outro vídeo, tão patético como o anterior, onde choroso e arrependido tentou mitigar o corrido.

Os empresários envolvidos pelas denúncias, ao mesmo tempo que repudiaram a prática de trabalho escravo e transferiram aos terceirizados a culpa, lançaram uma nota através da CIC-BG (Câmara de Indústria e Comércio de Bento Gonçalves) que é uma “pérola”. Na nota eles acusam os programas sociais mantidos pelo governo como os causadores do problema, porque, segundo eles, não existe mão de obra qualificada e os programas sociais que retiram as pessoas da miséria absoluta contribui para que eles não se profissionalizem. O trabalho que as mais de duzentas pessoas faziam era muito simples, portanto, não se sabe o tipo de qualificação profissional a que se referiram. A empresa Oliveira & Santana era a responsável pelo trabalho e o empresário, Pedro Augusto Oliveira, pagou fiança de R$ 40 mil para continuar livre enquanto responde o processo. Nem esfriou esta denúncia de trabalho escravo e outra já foi feita, agora em Joinville, outra região próspera do país, parece que o bolsonarismo, em apenas quatro anos, liberou os demônios do fascismo e do nazismo recalcados no inconsciente nacional.

Vinicius Todeschini 03-03-2023

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