Crónicas do Brasil | 19-05-2023 19:08

Camões e Chico - Chico e Camões

Vinicius Todeschini

O prêmio “Luís Vaz de Camões” foi instituído em 1986 para homenagear os escritores da mesma língua de Camões e Chico Buarque, que foi premiado em 2019, só recebeu o prêmio agora, porque Bolsonaro se recusou a assinar o ato de entrega do referido prêmio, o que não deixou de ser outro prêmio para o nosso compositor popular -atuante- mais importante. Chico tem uma capacidade singular de traduzir um país, cujo povo é explorado secularmente, mas jamais se revoltou contra os que drenam o seu sangue.

Chico Buarque é filho do grande historiador e sociólogo, Sérgio Buarque de Holanda, mais historiador que sociólogo, segundo o próprio Chico. Sérgio é autor do livro, “Raízes do Brasil”, uma referência fundamental para quem estuda a formação do povo brasileiro. O livro foi escrito na década de 30 do século passado, portanto existem inumeráveis releituras e críticas dessa obra. A relação de Chico com o pai sempre foi muito boa, a sua casa era uma Open House e ele conviveu, desde muito jovem, com grandes intelectuais e artistas e absorveu várias influências culturais que foram fundamentais para a sua formação. Ex nihilo nihil fit. Vinicius de Moraes, por exemplo, era um grande amigo do seu pai e Chico lembra muito bem a primeira vez que ouviu e viu Vinícius cantar e tocar violão, a canção foi “Medo de Amar”. “Vire essa folha do livro e se esqueça de mim/Finja que o amor acabou e se esqueça de mim/Você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz/E que ter medo de amar não faz ninguém feliz”.
Camões é o poeta da identificação cultural de Portugal, país que nos colonizou e nos deu a língua mais doce e uma das mais complexas desta Babel planetária de línguas e dialetos. Séculos nos separam de Camões, mas o poder da palavra faz esta distância, intransponível fisicamente, ficar ao alcance da mão de quem apanha um livro para ler e viajar. Camões, ao contrário de Chico, tem uma biografia cheia de lacunas e dúvidas e, naturalmente, recheada de folclores criados por admiradores e críticos, através do tempo. Os dez cantos de “Os Lusíadas” em versos decassílabos ‘por mares nunca de antes navegados’ imortalizaram o poeta e, a sua epopeia, transfigurou um povo para além do seu tempo.
O prêmio “Luís Vaz de Camões” foi instituído em 1986 para homenagear os escritores da mesma língua de Camões e Chico Buarque, que foi premiado em 2019, só recebeu o prêmio agora, porque Bolsonaro se recusou a assinar o ato de entrega do referido prêmio, o que não deixou de ser outro prêmio para o nosso compositor popular -atuante- mais importante. Chico tem uma capacidade singular de traduzir um país, cujo povo é explorado secularmente, mas jamais se revoltou contra os que drenam o seu sangue. A boca da miséria -a que espuma por não saber dizer, textualmente, o nome dos seus algozes- tem em Chico o seu mais fiel tradutor. “Na barriga da miséria nasci batuqueiro/Eu sou do Rio de Janeiro”, assim é Chico Buarque de Holanda, aquele que cria a voz dos que não sabem falar e canta, como em “Construção”, a saga do brasileiro pobre e calado em seu conformismo. “Morreu na contramão atrapalhando o sábado”, Morreu na contramão atrapalhando o “tráfego”, “Morreu na contramão atrapalhando o “público”.
O Brasil conheceu muito da sensibilidade das mulheres e a opressão em que viviam na sociedade brasileira, patriarcal e chauvinista, através das muitas canções que ele criou. “Olhos nos Olhos”, onde a mulher abandonada canta para o homem que está muito melhor do que quando estava com ele, mas, mesmo assim, não descarta a possibilidade de uma volta. “E quantas águas rolaram/Quantos homens me amaram/Bem mais e melhor que você” e no final; ‘Quando talvez precisar de mim/Cê sabe que a casa é sempre sua venha sim’. Na antológica, “Atrás da Porta”, o drama da ruptura é uma ferida que não cicatriza jamais. “Dei pra maldizer o nosso lar/Pra sujar teu nome, te humilhar/E me vingar a qualquer preço/Te adorando pelo avesso/Pra mostrar que ainda sou tua/Até provar que ainda sou sua”. A interpretação de Elis Regina canonizou essa canção e jamais foi superada.
Camões, pelo pouco que se sabe, foi um homem inquieto, um homem da ação, quase um antípoda de Fernando Pessoa, o poeta português mais popular no Brasil, disparadamente. Em suas inúmeras travessias pela vida acabou perdendo o olho direito em uma batalha e quando voltou para a sua terra perdeu, também, o amor da sua vida, Catarina de Ataíde, que estava prometida a ele. Ela casou-se com um janota e Camões em um lindo soneto comparou a sua experiência com a de Jacó, apaixonado por Raquel, cujas artimanhas de seu tio Labão o fizeram casar com Lia. “Os dias, na esperança de um só dia, Passava, contentando-se com vê-la; Porém o pai, usando de cautela, Em lugar de Raquel, lhe dava Lia”.
Chico musicou algumas poucas letras, lembro de memória de “Morte em Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto e “Mulheres de Atenas” de Augusto Boal, já, como letrista, são inúmeras as parcerias de Chico com outros músicos e grande clássicos da música popular brasileira nasceram assim. Tom Jobim, Edu Lobo, Francis Hime, e tantos outros compositores geniais tiveram suas músicas letradas por ele. Ele também tem uma produção literária significativa, mas é ofuscada, inevitavelmente, pela comparação com a sua obra musical. Em 2012, Chico lançou um livro chamado, “O Irmão Alemão”, muito embora seja ficção, esse livro tem base na realidade, o seu pai morou em Berlim na década de 30 do século passado, ainda solteiro, e um filho nasceu da sua relação com uma mulher alemã. Assim é Chico Buarque de Holanda, tricolor de coração, torce para o Fluminense do Rio de Janeiro, e jogador de futebol “frustrado” que compensa isso jogando pelo Politheama, clube que fundou em 1978, onde até Bob Marley jogou.

Vinicius Todeschini 19-05-2023

Mais Notícias

    A carregar...
    Logo: Mirante TV
    mais vídeos
    mais fotogalerias

    Edição Semanal

    Edição nº 1694
    11-12-2024
    Capa Vale Tejo
    Edição nº 1694
    11-12-2024
    Capa Lezíria/Médio Tejo