Crónicas do Brasil | 07-06-2023 20:03

O Caráter Ideológico

Vinicius Todeschini

O povo campesino da Bolívia desconhecia a luta de Che e achava muito perturbador enfrentar à ordem estabelecida há séculos daquela forma, mas da densa escuridão do nada o espectro de Guevara ressurgiu na Bolívia e o lugar onde foi assassinado virou local de culto. O guerrilheiro ateu foi martirizado pelo exército boliviano, porém, pouco a pouco, começou a ser cultuado como uma espécie de santo. A imagem de Che Guevara é cultuada pelo mundo que nega os ideais do homem que deu origem ao mito.

Como as ideologias influenciam a formação da subjetividade e do caráter de cada um ou qual o nível de participação da subjetividade e do caráter na formação das ideologias? Winnicott -psicanalista inglês- achava que uma “mãe suficientemente boa” era o suficiente para evitar que alguém se tornasse radical. Controvérsias não faltam para transformar isso em um debate espinhoso e sem saída. O ex-presidente boliviano, Hugo Chávez, era filho de professores do Ensino Fundamental e foi criado pela avó paterna no estado mais pobre da Venezuela, mas, assim mesmo, conseguiu mudar o rumo de um país dominado por uma das elites mais cruéis do continente. Nada mais comum no mundo do que a exploração do homem pelo homem e, por consequência, de grupos pequenos, ricos e poderosos, sobre toda uma população. Chávez rompeu uma estrutura, mas não conseguiu levar o seus país a uma condição de desenvolvimento progressivo e constante, mesmo tendo feito alguns avanços na diminuição da pobreza -em 1999, 20/1% dos venezuelanos viviam em pobreza extrema, em 2007 esse índice caiu para 9/5%.

A Venezuela, mesmo sendo rica em petróleo, nunca conseguiu fazer dessa riqueza uma fonte de prosperidade permanente que melhorasse, gradualmente, a qualidade de vida do seu povo. Chávez morreu em 2013 e o seu sucessor, Nicolas Maduro, está no poder desde então, no entanto, sua última vitória nas eleições, em 2018, deixou dúvidas sobre a lisura do processo. O apoio das Forças Armadas e da maioria da população não salvou o seu governo de ser acusado, recorrentemente, pelos EUA de liderar o narcotráfico na região, junto com seus principais aliados do governo, Maduro, em contrapartida, credita a maior parte dos problemas econômicos do seu país ao boicote econômico norte-americano. A lei 113-278 de 2014 proíbe todas as empresas estadunidenses e estrangeiras de realizar negócios com a Venezuela. Os bloqueios e sanções sucessivos pioraram muito a situação do povo venezuelano, que vive a beira da miséria e em um êxodo permanente pelo mundo em busca de melhores oportunidades.

O presidente Lula tem uma personalidade complexa e, mesmo os seus inimigos, o admiram em alguns pontos. Steve Bannon, guru da extrema-direita americana, nunca negou o fascínio por Lula, mas o presidente brasileiro, com as suas últimas declarações e posicionamentos, tem conseguido desagradar ‘a gregos e norte-americanos’, principalmente. “A Esquerda Preponderante” que conseguiu chegar ao poder no início do século XXI é muito diferente da “Velha Esquerda” de antes do golpe militar de 1964, onde Brizola e Arraes brilhavam e pareciam estar destinados e assumir o país em algum momento. O golpe ceifou essa possibilidade e o PT, de Lula e José Dirceu, surgiu como uma estrela fulgurante ofuscando os velhos líderes, já com suas trajetórias mutiladas pelo arbítrio de uma autocracia feroz e hipócrita que nunca foi devidamente julgada, e, por isso mesmo, ainda tem a jactância (através dos seus defensores) de negar o próprio golpe e nomear-se “Movimento de 64”. É risível ver os generais Mourão e Heleno defenderem uma ditadura que torturou mais de 20 mil pessoas (dados de 2019 do Human Rights Watch). No discurso -recorrente- dessas lideranças da extrema-direita se percebe, facilmente, a velha fórmula de Goebbels de ficar repetindo uma mentira insistentemente para que seja aceita como verdade.

A discussão do tamanho do Estado e a sua importância para manter a sociedade integrada dividem cada vez mais o mundo. Escolher entre um Estado regulador que não permita tantas desigualdades e preste assistência a quem precisa, ou Outro, que se exima de qualquer compromisso social e deixe para os cidadãos todas as iniciativas, se restringindo, apenas, a manter um forte aparato de repressão capaz de conter qualquer tipo de revolta ante o crescimento da desigualdade, é uma escolha? Talvez seja apenas falta de escolha. O fato é que o povo não participa dessas discussões em nível decisório, o ruído da multidão que se percebe é só isso mesmo, ruído, não se trata de uma discussão consistente e transformadora. O poder econômico concentrado nas mãos de pouco -há tanto tempo- criou um clube com lugares limitados onde, para alguém de fora entrar, alguém de dentro tem que sair e como os governantes dependem do dinheiro para chegar e se manter no poder, não há como esperar mudanças reais no que está posto e que se encaminha cenários mais sombrios do que os atuais.

O quanto há de subjetividade há no caráter “objetivo” de cada ideologia? Nunca saberemos exatamente, por exemplo, o que levou Ernesto Che Guevara a trocar a coliderança e a idolatria em Cuba pela guerrilha em selvas bolivianas, quando todas as probabilidades apontavam para o desastre. Como escreveu o poeta Ferreira Gullar: “Ernesto Che Guevara/teu fim está perto/não basta estar certo/pra vencer a batalha/ Ernesto Che Guevara/é chegada a tua hora/e o povo ignora/se por ele lutavas”. O povo campesino da Bolívia desconhecia a luta de Che e achava muito perturbador enfrentar à ordem estabelecida há séculos daquela forma, mas da densa escuridão do nada o espectro de Guevara ressurgiu na Bolívia e o lugar onde foi assassinado virou local de culto. O guerrilheiro ateu foi martirizado pelo exército boliviano, porém, pouco a pouco, começou a ser cultuado como uma espécie de santo. A imagem de Che Guevara é cultuada pelo mundo que nega os ideais do homem que deu origem ao mito.

Vinicius Todeschini 05-06-2023

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