Crónicas do Brasil | 17-06-2023 12:38

Conservadorismo de Fachada

Vinicius Todeschini

As pequenas igrejas, algumas funcionando em garagens das casas dos próprios pastores, fizeram o trabalho de células que os núcleos de militantes faziam antes. Outro aspecto considerável é a falta de renovação dos quadros da Esquerda, principalmente do Partido dos Trabalhadores, que não apresenta nenhuma novidade há vários anos. Juntando isso a um discurso que não tem mais consonância popular, o resultado, muito embora tenha surpreendido às cúpulas políticas, estava se desenrolando diante de todos, mas muitos não quiseram ver. A cegueira da soberba do pensamento acadêmico que se julga acima de todos os outros saberes.

O Brasil, nos últimos tempos, tem demonstrado afinidade com ideias reacionárias e fundamentalistas. A leitura da Bíblia sob o prisma do fundamentalismo pentecostal à moda norte-americana, pois foram eles, os norte-americanos, que introduziram esses movimentos por aqui, criou gradualmente e, ao longo de muitas décadas, uma mentalidade capaz de suportar narrativas extensas e fundamentalistas, mas que, na verdade, são frutos de narrativas orais que foram recebendo contribuições, através dos séculos e dos milênios, como a de Jó, que está presente dentro da tradição oral dos povos do Oriente Médio há cerca de 4 mil anos. A fábula em questão é usada pelo fundamentalismo pentecostal como base para a teologia da prosperidade, mas na verdade é uma teodiceia. Através do tempo foi ressignificada e a sua mensagem foi incorporada pelos hebreus em um período de grande provação, quando o poderoso Império Persa dominava esta parte do mundo e obrigava o povo judeu a buscar exílio. A crise desse período tornou a narrativa adequada para quem não tinha nada a se apegar e necessitava criar esperanças no porvir. Jó incorpora a paciência como uma virtude essencial para suportar a existência cheia de provações e com poucos prazeres, exatamente o contrário da vida dos ricos e poderosos.

A divulgação insistente e interesseira de que a Bíblia possui todas as respostas aos problemas humanos em todas as épocas não se confirma, porque, na verdade, não são essas respostas que ela oferece e sim a possibilidade de inspiração e crescimento espiritual para enxergar a condição humana na sua relação com Deus em todos os momentos da existência de cada um, o que incluiu tempos mais fáceis e tempos mais difíceis. A fábula de Jó permite muitas interpretações e existem muitas camadas dispostas no texto para se explorar e, evidentemente, os que usam o texto para explorar a boa fé e a ingenuidade de milhões não deixarão de distorcê-lo e usá-lo para continuarem enriquecendo. No entanto, isso não retira às outras tantas possibilidades que o texto oferece, pois ele é rico de ensinamentos se for superado o fundamentalismo que incita o pensamento mágico do povo para explorá-lo financeiramente.

O fato de pessoas pobres aderirem ao movimento pentecostal confirma, entre tantas coisas, o distanciamento do pensamento acadêmico da realidade do povo. Vários tipos de manifestações, desde 2013, apontam para isso; a incongruência de boa parte da “Esquerda Preponderante” na relação com as periferias do país e foi, ali, onde os movimentos políticos, ditos progressistas e populares, perderam muito espaço político para os evangélicos. Um exemplo disso é o bairro Itaim Paulista, na cidade de São Paulo, que já foi base do PT, mas apoiou maciçamente a eleição de Bolsonaro em 2018. As pequenas igrejas, algumas funcionando em garagens das casas dos próprios pastores, fizeram o trabalho de células que os núcleos de militantes faziam antes. Outro aspecto considerável é a falta de renovação dos quadros da Esquerda, principalmente do Partido dos Trabalhadores, que não apresenta nenhuma novidade há vários anos. Juntando isso a um discurso que não tem mais consonância popular, o resultado, muito embora tenha surpreendido às cúpulas políticas, estava se desenrolando diante de todos, mas muitos não quiseram ver. A cegueira da soberba do pensamento acadêmico que se julga acima de todos os outros saberes.

O ressurgimento da extrema-direita não é um fenômeno nacional, porém aqui serviu aos interesses das elites que não são identificadas ideologicamente com esse segmento, mas que surfaram nesta onda com todo oportunismo que lhes é peculiar. Este conservadorismo de fachada confirma a hipocrisia dos ricos e poderosos que jamais renunciam a nada e que temem o povo de uma forma patológica. Lideranças políticas que poderiam levantar a bandeira da democracia e dos direitos humanos se renderam aos seus próprios interesses e os que não fizeram isso foram abandonados, politicamente, pelos que formaram os blocos preponderantes da política brasileira nestes últimos dez anos. Chegou ao ponto onde os discursos, considerados heréticos, tempos atrás, tornaram-se consagrados depois da ascensão do bolsonarismo ao poder, com suas práticas predatórias e suas pautas antidemocráticas. Parte dos brasileiros confundiram isso com liberdade de dizer o que vem a cabeça, quando na verdade se trata de uma lavagem cerebral feita massivamente e com apoio do sistema financeiro. O país regrediu.

Arthur Lira, presidente da Câmara Federal, é o exemplo perfeito deste tipo de político que está no topo da liderança no país. Considerado inimigo do povo por muitos, Lira consegue, com um discurso agressivo e pontual -mesmo favorecendo escancaradamente a bancada ruralista e desfavorecendo os povos indígenas e o meio-ambiente- exigir mais pastas e cargos para os seus aliados em troca do apoio para os projetos do governo, além de transferir todas as culpas para o Executivo, mantendo assim o status quo de uma elite que não tem nenhum interesse em transformações estruturais e tem como objetivo, permanente, manter o controle das principais intuições para evitar qualquer rarefação de poder em seus nichos. Será muito difícil implementar políticas progressistas em um cenário dominado pelos conservadores de fachada que continuam se locupletando com as benesses que o país, secularmente, oferece à classe política nacional e da qual jamais abrirão mão pacificamente. No frigir dos ovos todos viraram democratas...

Vinicius Todeschini 16-06-2023

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