Crónicas do Brasil | 28-07-2023 10:00

A estátua que fumava

Vinicius Todeschini

A síndrome burguesa de abstrair a miséria e a decadência que produz o seu sistema de inclusão pelo dinheiro é algo muito estratificado em países como o Brasil. Na Alemanha, por exemplo, cruzei moradores de rua morando embaixo de viadutos e em outros lugares lúgubres da grande cidade, em Praga os mendigos são peculiares em suas formas de esmolar, mas nada supera, em quantidade e variedade, a grande miséria produzida pela delirante burguesia do Terceiro Mundo.

O sol em uma linha paralela ao chão projetou os seus raios sobre um homem velho. O seu semblante prateado, como as estátuas que se apresentam na feirinha do parque, com um cigarro suspenso entre os dedos da mão esquerda paralisou-se em um lapso de tempo. Ergueu a mão esquerda e levou o cigarro até os lábios em um movimento lento e tragou profundamente congelando-se em um quadro, como se fosse uma estátua que fumava e depois, no frêmito dos passantes, se dissolveu no mar de movimentos desconexos da multidão, atrás das coisas comezinhas do dia a dia. Por um momento, estupefato, guardei aquele quadro estranho, mistura de Dalí com verduras e frutas. Epifania diurna na Feira Livre.

Atravessando os sentidos, mas sempre na contramão da sensatez e mancomunado com a loucura, o país busca os porquês - cinco anos depois - do assassinato de Marielle Franco, a vereadora negra, lésbica e guerreira das causas impossíveis de serem superadas sem mártires. Ela entrou para este triste panteão dos sacrificados pelas grandes causas para que continuemos nos sentindo humanos e sensíveis à vida e não robôs de carne, que só replicam condicionamentos de classe, de gênero e de cor de pele. Assim como a estátua que fumava se dissolveu depois da Gestalt desfeita, foi preciso que um governo eleito pela maioria e, completamente, oposto ao anterior determinasse a busca da solução desse crime brutal e ideológico, porque se dependesse, apenas, das instituições de Estado, que deveriam - por obrigação - resolver isso rapidamente e com mais possibilidades de êxito, porque, obviamente, quanto mais tempo passa mais complicado se tornar elucidar qualquer crime.

A síndrome burguesa de abstrair a miséria e a decadência que produz o seu sistema de inclusão pelo dinheiro é algo muito estratificado em países como o Brasil. Na Alemanha, por exemplo, cruzei moradores de rua morando embaixo de viadutos e em outros lugares lúgubres da grande cidade, em Praga os mendigos são peculiares em suas formas de esmolar, mas nada supera, em quantidade e variedade, a grande miséria produzida pela delirante burguesia do Terceiro Mundo. Acostumados a manter moradias no exterior, a alta burguesia brasileira, por exemplo, apoia Bolsonaro de forma intransigente, mas, principalmente, por causa do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, que serviu ao ditador Pinochet com grande dedicação e louvor. Nesse nível social, o alto clero financeiro do país é o modelo para os outros extratos abastados das classes médias altas do país. O valor do metro quadrado em regiões chiques das grandes cidades e os preços de produtos caros e pouco acessíveis tornam-se referências para o sentido de inclusão e exclusão nesse restrito clube social das elites, onde só entra quem tem muito dinheiro para chegar e se manter ali. Brasil pátria dos ricos, onde sobrevivem mais de 70 milhões de despatriados.

A hipocrisia condicionada aos rituais sociais do dia a dia se torna necessária para que os tecidos sociais disformes em todos os aspectos criem uma homogeneidade enganadora, visto que se olhando da distância certa se pode perceber que não passa de um grande mosaico, incoerente e assustador, mas que os folcloristas de plantão, a serviço da grande burguesia, costumam chamar de identidade nacional. As grandes Redes Midiáticas, como a Rede Globo, por exemplo, despertam amor e ódio por isso, porque retratam os conflitos sociais entre esses segmentos díspares, como se existisse um amálgama criado a partir de uma substância pastosa formada de tradição, família e propriedade dando liga e sustentando um provável caminho de igualdade futura, quando é, justamente, o contrário disso.

O povo brasileiro não é conservador, porque o brasileiro comum é fruto de séculos de imposição social por elites cruéis e avassaladoras. Não há e nunca houve condições de enfrentamento dessa realidade com chances reais de mudá-la, por isso, também, Lula é um pragmático e representa bem esses brasileiros que são a maioria disparada da nação, mas que vivem há mais de cinco séculos, geração após geração, sob o tacão da ditadura econômica mais injusta possível dos que sempre comandaram o país. O povo brasileiro se revela inovador quando tem oportunidades e avançados nos costumes quando não é cerceado pelas forças da Reação, que utiliza a sua religiosidade como uma espécie de Super Ego coletivo, além de explorá-lo economicamente através das grandes e pequenas igrejas evangélicas, para explorar a credulidade natural e a ingenuidade desse mesmo povo.

A estátua que fumava, o país que não consegue romper com a exploração secular do povo, as distâncias sociais intransponíveis pela falta de mobilidade social, tudo isso pode parecer uma bad trip, mas é apenas um país tropical que tenta sobreviver a despeito das suas elites, indiferentes à profundidade do abismo da exclusão social e da marginalidade involuntária. “Os donos do país” aceitam por algum tempo um governo progressista, não indefinidamente, senão começam as conspirações e a criação de novas justificativas para velhas fórmulas golpistas. O objetivo é descontruir, como foi no período Temer/Bolsonaro, tudo que se fez para tentar transformar o que está posto. O problema maior dos reformistas é que estão tentando construir um novo edifício em cima de velhas estruturas, onde tudo pode ruir a qualquer momento

Vinicius Todeschini 27-07-2023

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