Os militares na berlinda
Os últimos quatro anos o Brasil assistiu incrédulo a ascensão de um movimento fascista chamado por aqui de bolsonarismo, que poderia ser chamado também de ‘o retorno do recalcado’, para usar um jargão da psicanálise. Liderados por um ex-capitão que foi convidado a se retirar do exército e que fez a sua carreira política no estado do Rio de Janeiro, o bolsonarismo produziu uma série de fenômenos e epifenômenos dignos de um mix entre o terror e o surrealismo.
A velha tradição golpista latino-americana já rendeu muitas aventuras para os militares, mas está chegando a hora de ressignificar essa trajetória, pelo menos no Brasil. O exército brasileiro se orgulha de muitas coisas que sob a luz dos fatos são, no mínimo, discutíveis. A última guerra que o Brasil participou diretamente com todos os seus recursos foi a guerra do Paraguai, onde na batalha de Acosta Ñu, ao final da guerra, 20 mil soldados brasileiros massacraram 3,5 mil soldados paraguaios entre 9 e 15 anos e alguns poucos veteranos. A Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) dizimou cerca de 300 mil paraguaios, a metade da população do país, 80% eram homens. Não há nenhuma razão para se orgulhar dessa participação, mas há quem ache o contrário.
Na II Guerra Mundial, a participação do Brasil serviu para Getúlio trocar com o presidente americano, Franklin Delano Roosevelt, a construção de uma base aérea em Natal (Rio Grande do Norte) pela construção da Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda (Rio de Janeiro), que colocou o país no rumo da industrialização. Getúlio Vargas flertou com o nazismo, mas por fim declarou guerra aos alemães em 1942, após cinco navios mercantes brasileiros serem torpedeados pelos submarinos nazistas. Para o front foram enviados cerca de 25 mil soldados – ‘chamados de ‘pracinhas’ - despreparados para um combate de tal magnitude, cerca de 500 deles morreram em combate e mais de 2 mil foram feridos.
Os militares sempre viveram em seu próprio mundo e sempre se consideraram superiores aos civis, que eles preferem chamar de paisanos, pelo menos dentro dos quartéis. O mundo mudou, o exército americano agora é profissional, mas no Brasil os últimos quatro anos deixaram muito claro que o espírito das casernas brasileiras ainda continua o mesmo, desde que o marechal Deodoro da Fonseca conduziu o primeiro golpe que acabou com a monarquia e fez o que as elites brasileiras, da qual era parte, queriam: a implementação de um regime que concentração de poder e dinheiro nas mãos de poucos em detrimento do desenvolvimento do povo e do país. Com a Abolição da Escravidão, pelo menos no papel, os temores das elites brasileiras era o que fazer com essa força excedente, além do que, desde novembro de 1866 um decreto do imperador libertou os escravos que serviram na Guerra do Paraguai, eram cerca de 7% do exército nacional, mas alguns dizem que em torno de 20 mil, entre homens e suas mulheres, foram libertos.
Os últimos quatro anos o Brasil assistiu incrédulo a ascensão de um movimento fascista chamado por aqui de bolsonarismo, que poderia ser chamado também de ‘o retorno do recalcado’, para usar um jargão da psicanálise. Liderados por um ex-capitão que foi convidado a se retirar do exército e que fez a sua carreira política no estado do Rio de Janeiro, o bolsonarismo produziu uma série de fenômenos e epifenômenos dignos de um mix entre o terror e o surrealismo. Reproduzindo propagandas nazistas em versões abjetas, propagando a supremacia racial, adotando o negacionismo em relação à ciência e criando mitos e narrativas que desafiam a compreensão mais racional, por pouco não levaram o país à bancarrota institucional e a mais uma ditadura. Tudo isso com o apoio de boa parte das Forças Armadas e a omissão dos militares que não apoiavam a aventura. No Brasil, infelizmente, o serviço público premia os seus maus funcionários mais graduados com a aposentadoria precoce quando cometem erros graves. É assim no Judiciário e nas Forças Armadas, Bolsonaro foi para a reserva aos 33 anos com proventos de R$ 11.945,49.
Finalmente derrotado nas urnas, não sem antes tentar um golpe, Bolsonaro e seu grupo apostaram na ingenuidade das pessoas e continuaram tentar a vender uma realidade invertida, como se vivessem em no ‘mundo bizarro’ dos gibis do Superman. Depois do malogro do golpe, graças a união da maioria dos brasileiros e das instituições em torno da defesa da democracia, começaram as investigações sobre “os patriotas”, os financiadores do levante. As investigações começaram agora a chegar ao núcleo duro, onde se concentra o Clã Bolsonaro e os seus agregados, entre os quais muitos militares, mas é, justamente, através de um deles e do seu acordo de delação premiada com a Polícia Federal que a casa pode cair totalmente. O tenente-coronel Mauro Cid estabeleceu esse acordo para livrar a ele e a sua família, inclusive seu pai, o general Lourena Cid, que foi colega de Bolsonaro na turma de cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras. Cid está preso há um bom tempo, mas percebeu o cerco se fechando para ele e a sua família, além do abandono explícito pelo seu ex-chefe, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro.
Os militares estão cansados desta exposição constante, no entanto, quando eram saudados por parte da população como os salvadores da pátria não pareciam se incomodar com a nova popularidade. Por ironia, para se redimirem terão que aceitar voltar para os quartéis e cumprirem a sua função, porém, dificilmente serão punidos a altura dos seus atos, porque no Brasil ainda é assim. Há alguns avanços como a PEC 21/2021 que acrescenta ao artigo 37 da Constituição Federal o inciso XXIII, vedando os militares da ativa a ocuparem cargos de natureza civil na Administração Pública municipal, estadual e federal.
Vinicius Todeschini 31-08-2023