Crónicas do Brasil | 20-10-2023 09:41

Amor fati

Vinicius Todeschini

Ninguém sai de uma guerra sem o sangue dos inocentes em suas mãos, no entanto, isso nunca foi um problema para os poderosos senhores da guerra que pairam sobre a civilização atando e desatando nós, alimentando conflitos e vendendo armas para o morticínio.

O tempo passando inexoravelmente não impedirá que as combinações que existiam antes se encontrem e possam se atrair, se repelir ou se beijar, para depois, modo continuum, entrar em processo de entropia. Albert Camus chegou à conclusão de que preciso evitar o desespero, por isso “é preciso imaginar Sísifo feliz”. A repetição de tarefas, o ir e vir do trânsito e todas as milhares de coisas esvaziadas de sentido que o “herói anônimo” reproduz, na conta de participar da civilização humana, não o salva da ignorância sobre si mesmo e do seu destino. O mundo impõe a maioria das aparentes escolhas, mas somos livres para decidir se continuamos ou não a girar na roda da existência. As guerras recorrentes reverberam no metal do coração das trevas corroendo as aspirações humanas, elas são a consubstanciação do mal-estar permanente da civilização, onde a paz é apenas um subproduto e o idealismo uma farsa.

A extrema-direita está à frente de muitos países, Israel está entre eles. A política de intolerância predomina nesses países e o país, governado por Benjamin Netanyahu, se destaca pela intransigência na relação com os palestinos. Israel possuiu forças militares muito poderosas e mais, uma população armada e sempre de prontidão para entrar em guerra. Não é à toa que em seis dias, em junho de 1967, derrotou uma frente árabe de quatro países apoiados por mais oito e afirmou a sua hegemonia em todo o Oriente Médio, mas nunca sem resistência. O Hamas publicou em 2017 um documento onde afirma que a sua luta é contra os sionistas que eles chamam de “agressores sionistas de ocupação”. Muito embora o grupo seja considerado terrorista por muitos países, outros como o Brasil, a Noruega, a China, a Turquia, a Rússia e o Irã não o classificam assim. Entre 2008 e 2023, sem contar o último ataque, que teve como consequência o atual conflito, os militares israelenses mataram 6.407 palestinos, a maioria civis, enquanto 308 israelenses, entre civis e militares, foram mortos por grupos armados palestinos.

Os Estados Unidos também são intransigentes em relação ao seu apoio a Israel, a circunstância parece vir a reboque dessa postura porque ela nunca muda, independente de quem estiver no poder. Juntos, EUA e Israel, são imbatíveis militarmente, até agora pelo menos, mas o ódio que despertam no resto do mundo não para de aumentar. Os altos interesses das grandes potências nessa região fazem a sua geopolítica ser a mais conflituada do mundo, alimentada por uma disputa milenar entre povos, mas sustentada verdadeiramente por interesses mesquinhos que buscam apenas o lucro, sem se importar com essas culturas ou com os seus povos. O ouro negro e as grandes reservas desse produto existentes ali são o combustível, aparentemente interminável, que é jogado no fogo dessas paixões atávicas sustentando uma guerra permanente, mas não declarada, e que, agora, foi sucedida por uma guerra plena.

Yitzhak Rabin foi assassinado em 1995 por Yigal Amir, um fundamentalista que era contra o avanço dos acordos de paz entre Israel e Palestina e, principalmente, contra os tratados provisórios de Oslo, onde se buscava um caminho para a criação de dois Estados. Prêmio Nobel da Paz em 1994, Rabin enfrentou muitas resistências dentro do seu país e assim mesmo criou uma esperança para a paz e o fim dos conflitos, até tudo acabar nas balas de um fanático, mas por ironia do destino a frase, dita em seu discurso na premiação do Nobel se confirmou. “Cemitérios militares em todos os cantos do mundo são testemunhos silenciosos do fracasso dos líderes nacionais em santificar a vida humana”. Com a morte de Rabin foram enterradas as chances reais de avanços na construção de uma convivência pacífica entre esses irmãos renegados um contra o outro. Em sua época existia uma divisão parelha entre a direita militarista e os campos mais liberais, mas, hoje em dia, tanto o seu legado como a Esquerda sumiram.

Israel é um dos estados mais agnósticos do mundo e cerca de 57% se declaram não religiosos, a taxa mundial é de 63% de religiosos. A pesquisa feita pela Gallup International com a WorldWide Independent Network of Market Research posicionou Israel entre os oito países menos religiosos do mundo, onde apenas 30%da população se considera religiosa. A pesquisa é de 2015, mas isso não parece ter mudado e torna análise dos conflitos ainda mais complexa, o elemento religioso está muito mais presente no lado do Hamas do que de Israel, por exemplo. Outra questão fundamental é que entre os teóricos do movimento sionista não havia nenhum rabino, o que dá ao movimento sionista um caráter laico e confirma que os interesses dessa guerra são territoriais e a religião não é a sua causa.

A trajetória desta região passou pelo controle dos britânicos durante 28 anos, de 1920 até 1948, o ano da fundação do Estado de Israel. Eles prometeram a independência árabe nessa área e a criação de um país para os judeus e, à guisa de isenção, se eximiram de fazer negociações mais complexas e definitivas, o que fizeram, a rigor, foi tentar agradar a dois senhores. Ninguém sai de uma guerra sem o sangue dos inocentes em suas mãos, no entanto, isso nunca foi um problema para os poderosos senhores da guerra que pairam sobre a civilização atando e desatando nós, alimentando conflitos e vendendo armas para o morticínio. A intransigência é a mãe de todo radicalismo e o ressentimento o pai de todo conflito. “E quem derramar sangue do homem, pelo homem seu sangue será derramado”. Gênesis 9:6.

Vinicius Todeschini 19-10-2023

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