Crónicas do Brasil | 06-11-2023 07:00

O Halloween no País do Saci-Pererê

Vinicius Todeschini

Uma vez colonizado sempre suscetível aos encantos estrangeiros e, habitualmente, reticente ao valor das coisas produzidas pela sua própria gente, é o velho “Complexo de Vira-Lata”, conceito criado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues para explicar esse fenômeno. Na descrição desse complexo de inferioridade, o escritor afirma que o brasileiro é um narciso às avessas, pois, ao invés de se deslumbrar com a própria imagem, cospe nela.

O município de Pontes e Lacerda se tornou destaque na mídia nacional, não por ser um município importante na economia do estado do Mato Grosso, ocupando o quarto lugar na produção bovina de leite e carne com mais de 700 mil cabeças de gado, mas porque o prefeito Alcino Barcelos gravou um vídeo anunciando a proibição das festas de Halloween nas escolas municipais da sua cidade. Tudo começou porque uma escola anunciou a festa e o fez sem o aval da Secretaria de Educação e entre os motivos elencados pelo prefeito está o fato desta festa não fazer parte do calendário acadêmico e muitos pais não terem dinheiro para comprar as fantasias para os filhos. Ele também alega que essa festa não faz parte da nossa cultura -o que é fato- a festa é importada dos países anglo-saxões e é comemorada em 31 de outubro nesses países. O Brasil tem o Saci-Pererê, mas não acontecem festas para essa entidade do folclore, a não ser quando o Sport Clube Internacional, cujo símbolo é o Saci-Pererê, é campeão. Incorporado pelo escritor Monteiro Lobato às suas estórias do Sítio de Pica Pau Amarelo e consolidado, oficialmente, por uma lei federal de 2013, o Saci, mesmo assim, não está vencendo o duelo com as bruxas.

Uma vez colonizado sempre suscetível aos encantos estrangeiros e, habitualmente, reticente ao valor das coisas produzidas pela sua própria gente, é o velho “Complexo de Vira-Lata”, conceito criado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues para explicar esse fenômeno. Na descrição desse complexo de inferioridade, o escritor afirma que o brasileiro é um narciso às avessas, pois, ao invés de se deslumbrar com a própria imagem, cospe nela. A reação do prefeito não deixa de ser uma resistência aos modismos importados que não tem nenhuma relação com a cultura criada aqui no país, claro que não é só o Brasil que está sujeito à invasão de culturas alienígenas, vários países passaram pelo mesmo processo, o México também, porém, esse país tem outro grave problema, ser lindeiro dos EUA. O Império americano exportou modos e costumes que levam desdita aos outros, mas conseguem se impor pelo poder econômico e pela propaganda, usando técnicas manipuladoras e massificadas através de filmes e comerciais e, mesmo tendo péssimos hábitos alimentares, que fazem mal a saúde, são os campeões mundiais em vendas nesse setor com os seus fast foods espalhados mundo afora.

O resultado de tudo isso é um ódio profundo e cada vez mais enraizado entre os povos, vejam a gravação de uma menina palestina falando de Israel, onde ela despeja a sua revolta contra os israelenses ao desejar que todos morram. Não mais dúvidas, esse ódio mortal gerou a intransigência mais profunda e insuperável, porque não sobrou nada para criar uma base de confiança, mesmo que precária, para um entendimento entre esses irmãos rebelados, eternamente, um contra o outro. As vísceras de séculos de conflitos estão expostas, mas a culpa atual é do Ocidente que poderia ter confirmado os dois Estados: um judeu e o outro palestino, mas, como sempre, se submeteu aos seus interesses mais vis que prevalecem sobre o que é certo e justo. As consequências todos estamos assistindo e muitos, infelizmente, estão vivendo na carne essa tragédia. O colonialismo se espalhou pelo mundo e as suas práticas perversas e o seu imperialismo estão contidos na constante grilagem das terras palestinas pelos israelenses.

Os valores de cada lugar são construídos pelas pessoas e, de geração em geração, são estratificados, mas o colonialismo é um vírus alienígena que se reproduz rapidamente e destrói tudo o que levou milênios para ser firmado. Em troca deixa o vazio que é logo preenchido por comportamentos e produtos trazidos do país colonizador, sem nenhuma relação ou afinidade com aquela cultura. As injustiças perpetuadas em troca de poder e dinheiro são tantas que não há tempo suficiente em uma vida para entendê-las, caso a caso, com profundidade, por isso a indiferença ou a superficialidade se estabeleceram como comportamentos recorrentes na atualidade. Com o advento da fake news produzidas em escala industrial se tornou mais fácil acreditar no que foi inventado para cooptar, mas na verdade o sujeito cooptado não é uma vítima desse sistema, é um consumidor privilegiado, que tem ganhos primários e secundários com essa prática. No fim todos se beneficiam, menos a verdade, porque a verdade dói e gera culpa e isso cria demandas intoleráveis para bilhões de pessoas que não querem perder tempo, nem gozo.

“Para que chorar o que passou/Carregar perdidas ilusões/Se o ideal que sempre nos acalentou/Renascerá em outros corações”, diz a canção, “Smile”, na sua versão para o português, mas essa melodia composta por Charles Chaplin, sem título e sem letra que, posteriormente, John Turner e Geoffrey Parsons, acrescentaram brilhantemente, não retrata mais uma verdade, porque, hoje em dia, o pragmatismo domina às novas gerações que, pouco a pouco, se interessam cada vez menos pelas suas origens e pela sua cultura, afinal a globalização -a última versão do imperialismo colonialista- venceu e agora só podemos sentir o gosto amargo dos seus frutos, que já nascem com esse gosto porque foram produzidos, artificialmente, em série e em condições forçadas.

Vinicius Todeschini 03-11-2023

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