Crónicas do Brasil | 05-01-2024 17:00

Acreditar, eu não

Vinicius Todeschini

Muitos guerreiros foram martirizados e morreram em defesa dos oprimidos, sem que o povo esboçasse qualquer reação ou mesmo demostrasse consciência sobre isso. A luta, aparentemente sem sentido de Ernesto Che Guevara, na Bolívia, acabou por resultar em algo positivo, porém só muito tempo depois, hoje a Bolívia tem um governo de Esquerda.

Não há como criar expectativas positivas, os conflitos atuais apenas confirmam o que todos já sabiam, mesmo assim prosseguiremos, não por um ato de resistência ao que está posto, mas porque a vida segue em frente e nos carrega. O samba, “Deixa a vida me levar/Vida leva eu” de Eri do Cais e Serginho Meriti, gravado magistralmente por Zeca Pagodinho, nos ensina. No Oriente Médio, Israel prepara o terreno para prolongar indefinidamente um conflito que já matou 21.822 pessoas na Faixa de Gaza, dados do Ministério da Saúde controlado pelo Hamas (os terroristas segundo o establishment). No leste europeu segue a guerra promovida pelo novo candidato a Napoleão, Vladimir Putin, que, mesmo sofrendo derrotas que não esperava sofrer, segue implacável em seu projeto de reerguer o império soviético sob nova direção.

Terrorismo é tudo aquilo que se levanta contra os interesses predatórios dos poderosos e é aceito, tacitamente, por todos que se beneficiam desse sistema de alguma forma. Ou alguém acredita que para a vida melhorar para todos, os que estão ‘muito bem obrigado’ renunciariam a alguma coisa significativa? “Acreditar, eu não/|Recomeçar, jamais/A Vida foi em frente/E você simplesmente não viu que ficou pra trás”, diz o maravilhoso samba de Dona Ivone Lara e Délcio de Carvalho, uma das pérolas da dupla que compunha sambas onde a poesia e a melodia parecem brotar juntas da mesma fonte, em tempo real e imaginário. O samba se refere a um amor que se arrepende e quer voltar, mas não há mais volta e no final o samba diz: “E eu que agora moro nos braços da paz/Ignoro o passado/Que hoje você me traz”. Quem dera poder ignorar o passado que deu origem a essa monstruosa criação que é o mundo atual, onde o real não pode ser completamente simbolizado e o imaginário nos leva ao engodo e ao estranhamento.

Os preços dos combustíveis dispararam na Argentina sob o tacão de Milei e a sua Reforma Trabalhista foi trancada no Judiciário. Em Porto Alegre, o atual prefeito -o bolsonarista Sebastião Melo- criticou duramente em suas redes sociais a Equatorial, empresa responsável pela energia elétrica de boa parte do estado, fruto da privatização da CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica). Privatizações em setores vitais, como energia elétrica e água, são problemáticos e na maioria dos países não deram certo. Segundo o centro de estudos em democracia e sustentabilidade, TNI (Transnational Institute), sediado na Holanda, pelo menos 884 serviços foram reestatizados pelo mundo. Se destacam as que foram feitas em países como a Alemanha e os EUA, pilares do capitalismo. Estes dados foram destacados entre 2000 e 2017 e perpassam serviços de fornecimento de água, energia elétrica, coleta de lixo, programas habitacionais, entre outros. Isso não deterá os que ganham com isso e também não despertará o gigante adormecido chamado “Povo” a assumir o papel de protagonista da sua própria história.

Muitos guerreiros foram martirizados e morreram em defesa dos oprimidos, sem que o povo esboçasse qualquer reação ou mesmo demostrasse consciência sobre isso. A luta, aparentemente, sem sentido de Ernesto Che Guevara, na Bolívia, acabou por resultar em algo positivo, porém só muito tempo depois, hoje a Bolívia tem um governo de Esquerda e, mesmo o golpe que a Direita deflagrou, não resultou em derrota definitiva para as forças populares, que voltaram, por via democrática, ao poder pouco tempo depois. Che certamente não desejava que tivesse sido assim, acreditava em um despertar das massas oprimidas em todo o continente a partir da Revolução Cubana, mas os sonos são singulares assim com as pessoas e o despertar acontece quando menos se espera. Na “Canção do Lobisomem” de Guinga e Aldir Blanc tem uma frase que define muito bem isso; “O que mais quero/Quando não espero/É que Deus dá”.

A dúvida pode gerar procrastinação, inação ou qualquer coisa que o valha, mas não gera guerras, não cria religiões nem seitas, como a certeza absoluta e inabalável faz, incansavelmente. Novas criaturas vêm ao mundo acreditando que estão imbuídos de uma missão, portadores de uma nova mensagem e por isso devem ser aceitos como os arautos da nova era. A nova era nunca chega, mas os fanáticos e seus seguidores servem ao sistema de várias formas, seja como exemplo que deve ser destruído, como o grupo de Koresh dizimado pela ATF e pelo FBI, em Waco no Texas, ou igrejas que se estabelecem apoiando governos e tornando a religião mais um ramo de negócios e um dos mais lucrativos, por sinal.

No fim das contas têm o saldo e o saldo do planeta é negativo há muito tempo. O enriquecimento absurdo de alguns, com a consequente desproporção social e econômica entre as pessoas, aumentando cada vez mais está levando o mundo a mais conflitos e se aproximando, em muitos casos, da desagregação completa. O processo continua avançado e poderá chegar a um ponto onde não haverá volta. Sinais de alerta são absorvidos e transformados em só mais um quadro de um programa de variedades, cujo único objetivo é manter as pessoas abstraídas, como se estivessem em uma vida suspensa, tipo Matrix, onde todos dormem para alimentar um maquinário que suga permanentemente a vida em troca de uma ilusão. Dar adeus as ilusões é renunciar a um amor impossível, mas como amar de novo sem se iludir?

Vinicius Todeschini 05-01-2024

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