Inimigos infiéis
Não houve guerra civil no Brasil, mas mesmo assim foram 21 anos de ditadura e para perdoar os crimes dos ditadores e asseclas foi criada uma anistia ampla geral e irrestrita e assim os exilados puderam voltar sem o risco de serem presos pelos seus algozes, contudo os que foram mortos pela ditadura jamais voltaram.
A manifestação convocada pelos bolsonaristas na Av. Paulista no último domingo, dia 25, reuniu cerca de 185 mil pessoas, cálculo feito pelo algoritmo P2PNet que se utiliza de fotos aéreas para contar o número de cabeças, mas a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo calculou cerca de 750 mil pessoas. O ato reuniu o melhor do pior desse segmento político, onde habitam hábeis manipuladores de uma fatia considerável da classe média e, por incrível que pareça, de pobres, fruto da crescimento das igrejas evangélicas nas periferias. Silas Malafaia, o pastor que enriqueceu explorando a boa-fé das pessoas, com um discurso virulento contra o STF (Superior Tribunal Federal) constrangeu os governadores bolsonaristas Jorginho Mello (Santa Catarina), Romeu Zema (Minas Gerais) e Ronaldo Caiado (Goiás), que desceram do palanque. Tarcísio de Freitas (São Paulo) permaneceu. Marcaram presença Ciro Nogueira (senador e presidente do PP) e os deputados mais agressivos do bolsonarismo: Carla Zambelli, Gustavo Gayer e Nikolas Ferreira, além do inflamável senador Magno Malta, todos do PL. Valdemar da Costa Neto (presidente do PL) proibido de se encontrar com Bolsonaro pelo STF discursou antes do ex-presidente.
Anistia pressupõe uma guerra civil anterior e, em consequência, para que um país volte à normalidade de uma convivência pacífica entre pares antagônicos ela surge como instrumento legal de pacificação. Não houve guerra civil no Brasil, mas mesmo assim foram 21 anos de ditadura e para perdoar os crimes dos ditadores e asseclas foi criada uma anistia ampla geral e irrestrita e assim os exilados puderam voltar sem o risco de serem presos pelos seus algozes, contudo os que foram mortos pela ditadura jamais voltaram. Os crocodilos têm uma reação fisiológica ao devorar uma presa, os seus olhos lacrimejam e por isso a expressão chorou ‘lágrimas de crocodilo’ se popularizou para designar pessoas que matam e choram no enterro das suas vítimas e assim muitos assassinos e torturadores foram beneficiados. No Brasil nunca se colocou os militares em seus devidos lugares e eles voltaram a fazer o que sabem fazer de melhor, conspirar. Ninguém viu os supostos militares legalistas levantarem a bandeira da democracia quando a conspiração estava em pleno andamento nos quartéis e em sua volta, porém ninguém quer responder por isso e Bolsonaro, Caiado, Temer e outros estão pedindo anistia para pacificar o país.
Bolsonaro ficou calado durante o seu depoimento do no dia 22 na Polícia Federal e aposta todas as suas fichas em seu capital político, os seus 22% de fiéis seguidores. A manifestação da Paulista lhe deu fôlego e até Lula reconheceu a magnitude do evento, mas as evidências são robustas, os fatos começam a se concatenar e confirmam o golpe que estava em andamento sob a batuta de Bolsonaro e por isso ele está ansioso por criar uma saída. As investigações avançam e a cada dia novas revelações confirmam o plano para derrubar a democracia, porém um sujeito que joga de forma capciosa em todos os lances sabe que o próximo passo é mobilizar todas as suas forças para tentar encontrar uma saída, entretanto não será tarefa fácil, porque atentaram contra instituições fundamentais do Estado Democrático de Direito. O ex-presidente Michel Temer voltou ao jogo para, também, defender a ideia de anistia para Bolsonaro, afirmando que assim ele ‘aliviaria’. Bolsonaro é um projeto de ditador fracassado que não desistirá tão fácil dessa ideia obsessiva de governar o país junto com os militares, em uma nova versão do golpe de 1964, por isso pediu para os seus apoiadores não levarem faixas contra quem quer que seja, embora nessa fase já não exista mais credibilidade para a sua inocência, porque existem os fatos que mostram o oposto.
A extrema-direita se modernizou e criou uma forma tênue entre a legalidade e a subversão, se aproveitando de insatisfações difusas para criar um sistema de cooptação populista altamente produtivo, em contrapartida a Esquerda perdeu o tom e seguiu acreditando em métodos tradicionais de fazer política, ledo engano, e ainda não demonstra ter encontrado formas de lidar com a extrema-direita. Na campanha vitoriosa de Lula contra Bolsonaro, o deputado federal André Janones foi fundamental nas redes sociais para enfrentar a máquina de guerra bolsonarista, capaz de criar e distribuir miríades de fake news e dispará-las por robôs. Janones, no entanto usou métodos que se equiparavam em agressividade e virulência com os da extrema-direita, portanto fazendo os bolsonaristas provarem do próprio veneno, mas a rigor nada de novo foi criado para enfrentar essa permanente ameaça à democracia promovida pelos neofascistas.
Personagens da extrema-direita sempre foram caricaturais, melodramáticos e bufões, mas mataram sem pestanejar e só não mudaram neste aspecto, basta olhar para Bolsonaro e Milei atuando para confirmar isso. A diferença desses dois personagens para os antigos é que são mais movediços e flexíveis, capazes de mudar o discurso quando se sentem expostos, assim foi Milei com o Papa Francisco, por exemplo, e Bolsonaro com ministro do STF, Alexandre de Moraes. Bolsonaro ofendeu o ministro e depois pediu ao ex-presidente Temer (que indicou Alexandre de Moraes ao STF), para escrever uma carta e tentar colocar panos quentes na situação. Não são inflexíveis como Hitler e Mussolini, porém não menos perigosos para a humanidade. Vencer a extrema-direita é fundamental para a sobrevivência da Esquerda, porque os extremistas não estão recuando, muito pelo contrário, e a democracia permanece sob ameaça.
Vinicius Todeschini 29-02-2024