Crónicas do Brasil | 09-08-2024 14:21

O mundo é dos autistas

Vinicius Todeschini

Leo Kanner, o médico austríaco que criou a definição nosológica do autismo: “distúrbios autísticos do contato afetivo”, também criou o conceito de mães geladeiras como causa: “Mantido desde cedo em uma ‘geladeira que não degela’, o autista se retrairia na tentativa de escapar de tal situação, buscando conforto no isolamento”. A culpabilização das mães não prosperou e ele mesmo acabou se retratando em outro livro: “Em defesa das mães”.

O crescimento vertiginoso dos casos de autismo assombra o mundo e atingiu a média de 1 um autista para cada 30 crianças, segundo dados de uma pesquisa feita, entre 2019 e 2020, nos EUA e publicado pelo Jama Pediatrics. Anteriormente o CDC (sigla em inglês do Centro de Controle e Prevenção de Doenças do governo dos EUA) tinha divulgado uma proporção de 1 em 44, com dados referentes a 2018. A grande diferença de uma pesquisa em relação a outra é a idade, na primeira foram avaliados crianças de 3 a 17 anos e na segunda na faixa de 8 anos. A proporção entre meninos e meninas é de 1 para 3,55, anteriormente era de 4 meninos para cada uma menina. Para se ter uma ideia mais referenciada desse crescimento vertiginoso, o mesmo CCE, em 2012, tinha alterado a prevalência estimada do autismo de 1 em 110 para 1 em 88. Os casos de autismo não param de aumentar mundo afora e seguem em uma escalada incoercível, indiferentes às classes sociais e as etnias.

O crescimento de novos diagnósticos de autismo abre mais um debate inconclusivo e que deverá seguir assim indefinidamente. Uma das explicações mais comuns para o que está acontecendo é o acesso aos novos conhecimentos sobre o TEA -Transtorno do Espectro Autista- pelos pais e, também, aos serviços públicos para o diagnóstico precoce e posterior atendimento com equipes multidisciplinares. Aliás, a nova denominação -TEA- só passou a existir nosologicamente no DSM-V (2013). A poluição, a fertilização in vitro e o uso de algumas medicações são algumas das hipóteses para as causas do autismo, mais de 90% dos casos têm origem genética, afirmam os especialistas, uma condição desenvolvida na vida intrauterina com causas genéticas difusas (:) o uso de alguns medicamentos durante a gestação -que poderiam causar mutações genéticas- e a idade avançada do progenitor, além de outros fatores multifatoriais e epigenéticos. O fator epigenético causa mudanças no fenótipo sem alterar o DNA, porém altera a forma como o genoma é colocado dentro da célula, o que pode afetar o uso ou o não uso dos genes pelo organismo, além do que: tudo que é hereditário é genético, mas nem tudo que genético é hereditário.

Não há como escapar, à mediocridade sempre nos alcança, e, assim como o flogisto foi descartado do mundo científico pela química de Lavoisier, muitas teorias ancoradas no paradigma atual serão superadas, mas não da mesma forma que as anteriores, porque a tecnologia atual é um determinante da new life e as resistências podem se tornar insuperáveis. A burguesia, por exemplo, deflagrou uma “revolução” por conta da decadência da aristocracia, que bebeu do próprio veneno e sucumbiu ao ‘discreto charme da burguesia’ (título de um filme de Luis Buñuel e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 1973). O surrealismo nos alcança, muito embora nunca o alcancemos plenamente para manejá-lo ‘à moda da casa’, ele nos visita em sonhos e sobrepõe personagens ao canhestro papel que desempenhamos no dia a dia. O autismo, em sua configuração atual, apresenta progresso apenas em sua definição, mas nada que aponte a sua etiologia. Remédios não específicos são usados para mitigar e dar suporte, o nome remédio não poderia ser mais apropriado, pois somente remedeia a condição.

O mundo que habitamos é movido, criado e re-criado incessantemente por imagens e o sentido da visão está saturado pelo bombardeio de miríades de telas, criando assim limitações que podem se tornar definitivas nos outros sentidos, principalmente o ‘ouvir’. A leitura sossegada e profunda de um livro no alpendre de uma casa sentado em uma cadeira ou deitado em uma rede, onde a fruição de todos os sentidos nos faz viajar em um universo autoral que, pouco a pouco, se confunde com o nosso, é completamente diferente de uma experiência audiovisual de um filme ou videoclipe e todas as outras formas audiovisuais propostas pelo hodierno. O bombardeio imagético permanente não criou uma nova estética, mas os videogames refletem a ética resultante desse processo, que inflama gerações sucessivas a uma agressividade persecutória. O autismo parece ser a resposta adequada ao bombardeio intermitente de informações vazias de sentido e não um contraponto a uma realidade líquida e esquizofrênica.

Leo Kanner, o médico austríaco que criou a definição nosológica do autismo: “distúrbios autísticos do contato afetivo”, também criou o conceito de mães geladeiras como causa: “Mantido desde cedo em uma ‘geladeira que não degela’, o autista se retrairia na tentativa de escapar de tal situação, buscando conforto no isolamento”. A culpabilização das mães não prosperou e ele mesmo acabou se retratando em outro livro: “Em defesa das mães”. A partir de 2013, o conceito TEA (Transtorno do Espectro Autista) acabou se tornando preponderante para diagnosticar crianças que apresentam dificuldades na interação social e emocional e comportamentos repetitivos e restritivos, porém outros diagnósticos foram sendo subnotificados, o que explica, em parte, o aumento em progressão geométrica dessa condição, que não pode mais ser subestimada. Com o narcisismo ferido e expectativas rarefeitas, os pais dessas crianças já não adentram ao novo mundo com a força ingênua da paixão, mas com estranheza e temor redobrado.

Vinicius Todeschini 08-08-2024

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