O Coronelismo, a Uberização e o Neoliberalismo – Um Conto sem desconto ou cashback
Não se pode viver bem em uma sociedade de consumo sem ter muito dinheiro e tempo para desfrutá-lo, o que um “empreendedor uberizado”, jamais alcançará. O vilipêndio imposto por um processo de convencimento ideológico não é menos perverso do que a sua imposição pela força bruta, mas na maioria das vezes o seu resultado destrutivo é mais insidioso e definitivo.
A situação política atual no Brasil é preocupante e a disputa pelo poder criou novas arenas de combate, mas todas elas têm em comum a busca incessante pelos interesses financeiros imediatos dos congressistas e dos seus apaniguados. ‘As Emendas Parlamentares Impositivas’ se tornaram o cerne da questão, nelas está focado todo o interesse do atual Congresso Nacional e do seu presidente, ‘o coroné Arthur Lira’. A liminar do Ministro do STF-Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, que havia suspendido as emendas impositivas de deputados e senadores foi confirmada pelo Plenário do STF e com isso a tensão entre os poderes atingiu um novo nível. O Colegiado do Tribunal também manteve outras duas liminares que exigem ‘o cumprimento dos requisitos constitucionais da transparência e da rastreabilidade e de fiscalização pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Controladoria-Geral da União (CGU)’.
O voto do ministro Flávio Dino vai no sentido de que há limites da ordem jurídica e que não podem ficar sob a liberdade absoluta do parlamentar que as apresenta, ou seja; é um basta na farra das chamadas “Emendas Pix”. Assim definiu o ministro em seu voto (:) O espaço de discricionariedade, a seu ver, “não pode dar lugar à arbitrariedade, que desconsidere a disciplina constitucional e legal aplicável à matéria”. No decreto do ministro ficam ressalvados os recursos destinados a obras já iniciadas e em andamento ou a ações para atendimento de calamidade pública formalmente declarada e reconhecida. O ministro Dino foi além, e reiterou o caráter da parlamentarização das despesas públicas no presidencialismo (regime constitucional brasileiro), mas sem os mecanismos de responsabilidade política e administrativa do sistema parlamentarista, por exemplo. Este caráter do atual Congresso começou a se delinear em 2015, quando já se preparava o golpe político no Congresso para derrubar a presidenta Dilma.
Hoje temos Arthur Lira, o coroné de Alagoas, na presidência, quase como um senhor feudal, e as suas pretensões, ao contrário de outros políticos (inclusive de um passado recente), não é tentar ser presidente do Brasil, mas sim continuar no poder da Câmara dos Deputados, onde o controle das ‘Emendas Impositivas’ é fundamental para que o newpower adquirido pelos deputados se mantenha. O objetivo mais imediato de Lira é fazer o seu sucessor na presidência da Câmara e continuar mantendo a liderança. A presidência da Câmara dos Deputados, desde Eduardo Cunha, mudou significativamente o perfil: todos são conhecedores profundos das regras estatutárias e sabem -como mestres nessa arte- manipulá-las. Esse período teve o seu ápice durante o governo Jair Bolsonaro, quando o ‘Orçamento Secreto’ foi imposto pelo Congresso. As limitações de Bolsonaro como político e gestor fez com que ele, ávido pelo poder discricionário total que esperava conquistar implodindo as instituições democráticas, tenha entregado parte do poder presidencial ao Congresso, o mais desqualificado e fisiológico desde a redemocratização.
O presidente Lula enfrenta uma Direita sob o comando da Extrema-Direita e não será fácil recuperar o terreno perdido para este segmento que, infelizmente, ainda está em fase de crescimento no mundo inteiro. A ideia de que você dirigir um carro que trabalha por aplicativo, de 12 a 14 horas por dia, o torna um empreendedor, caiu no gosto de um segmento significativo da população mais jovem. Pessoas assim, além de não terem nenhuma consciência política, esquecem que estão envelhecendo e que esta carga horária de trabalho, somada à insalubridade de dirigir um carro diariamente por tanto tempo, acabará minando a sua saúde e, sem nenhuma assistência ou qualquer seguro por acidente de trabalho, o futuro não é alvissareiro. Em idos tempos de proteção social, com sindicatos atuantes na defesa dos direitos dos trabalhadores, isso não aconteceria, mesmo porque os próprios trabalhadores tinham plena consciência do que era ficar à mercê do capitalismo. O neoliberalismo, entretanto, soube driblar tudo isso e transferir a culpa das crises ao sistema de proteção social.
Ser proprietário do próprio negócio e proletário dele, explorar e ser autoexplorado, tudo junto e ao mesmo tempo, era algo inconcebível há pouco tempo atrás, mas graças ao rápido avanço neoliberal se tornou uma realidade. Se trabalha muito, se ganha pouco, não se conhece o patrão, nem se tem qualquer interação maior com colegas, porque um manto de invisibilidade e de individualismo radical atravessam a ‘uberização do trabalho’ e estas novas condições estão determinando uma situação em que o gozo, sob o ponto de vista da psicanálise, se encaixa perfeitamente como explicação. Se goza onde se sangra, onde se repete compulsivamente o ato, porque para Freud é pulsão de morte, a compulsão à repetição. São como novas formas de se apropriar do alheio, o popular e inconfundível ‘roubo’, pois aqui também se trata de um trabalho assalariado, mas com uma roupagem de autonomia e independência. Não se pode viver bem em uma sociedade de consumo sem ter muito dinheiro e tempo para desfrutá-lo, o que um “empreendedor uberizado”, jamais alcançará. O vilipêndio imposto por um processo de convencimento ideológico não é menos perverso do que a sua imposição pela força bruta, mas na maioria das vezes o seu resultado destrutivo é mais insidioso e definitivo.
Vinicius Todeschini 21-08-2024