O Domínio dos Fatos e o Normal Bizarro
O pior Congresso da história da redemocratização brasileira já está agindo e aprovou ontem, dia 27, uma PEC que pode acabar com todas as possibilidades legais para a interrupção da gravidez. O texto contém o conceito de ‘inviolabilidade do direito à vida desde a concepção’.
O mundo paralelo que acompanhava o mundo oficial do Superman, se chamava ‘ Mundo Bizarro’ ou ‘Bizarro World’. Existem várias abordagens temporais na criação desse mundo fictício, paralelo a outro, que também é ficção, mas todas elas são naturalmente arbitrárias. No único mundo que conhecemos, no entanto, o conceito de normalidade ficou tão elástico que ultrapassou a sua própria capacidade de lacear. Eis o mundo atual e, mesmo que seja impossível mensurar e enumerar as causas que o tornaram assim, é o único mundo que temos. Se pode pensar que o idealismo de tantas gerações determinou muitas utopias e sonhos de um mundo melhor, onde justiça e paz realmente vigorassem, mas nenhuma delas aconteceu e o sonho acabou, como disse John Lennon ao final da Era Hippie. Hoje vivemos como os dependentes de algum vício impossível de largar completamente, um dia por vez. A bizarrice das coisas e a inversão de valores nos atinge diretamente todos os dias e nenhum lugar do planeta escapa disso. O pragmatismo criou bases irrefutáveis para as gerações abaixo dos 50 anos e o desalento, pela egrégora criada ao longo dessas póstumas décadas, contaminou a todos com o seu veneno.
Bolsonaro se declarou completamente inocente de todas as acusações e os jornalistas (:) Alexandre Garcia (ex-porta voz de João Batista Figueiredo), Augusto Nunes (defensor ferrenho da ditadura de 64) e Humberto Martins (ex-assessor de imprensa de Collor de Melo), somados a tantos outros da mesma cepa fascista, não só saíram em defesa do golpista contumaz como criticaram o ministro Alexandre de Moraes. Minimizar os atos de violência e repressão da ditadura foi tarefa dessa gente, assim como tentar desclassificar o STF que, mesmo tendo sido conivente -para dizer o mínimo- no golpe político engendrado pelo Congresso contra a presidenta Dilma, em 2016, dessa feita ajudou a salvar o Brasil de mais uma aventura golpista que nos levaria mais uma vez a passar pelos portais do inferno, recheado de tacões militares e retrocessos culturais. Porém, o pior Congresso da história da redemocratização brasileira já está agindo e aprovou ontem, dia 27, uma PEC que pode acabar com todas as possibilidades legais para a interrupção da gravidez. O texto contém o conceito de ‘inviolabilidade do direito à vida desde a concepção’.
A Esquerda paga o preço de ter subestimado e tentado ridicularizar por muito tempo os pensadores desse segmento, tratando-os como toscos e simplistas, foi um grave erro, pois o conhecimento tem muitos caminhos e não é propriedade de ninguém. As lições de Gramsci que serviram a tantas conquistas da Esquerda democrática parecem esquecidas, esmaecidas pelo tempo, mas na verdade foram adaptadas e amalgamadas com fórmulas religiosas e psicológicas de dominação pelos seus inimigos mortais e estão dando resultados fantásticos, mas levando o mundo para um caminho perigoso e, talvez, sem volta. Nos EUA a volta de Trump com uma vitória retumbante sobre Kamala Harris confirma que a pressão sobre Biden, para que desistisse da reeleição, não foi uma boa ideia. Afrodescendentes do sexo masculino votaram em Trump, latinos também, o que torna a situação mais complexa do que parecia. Há nos EUA uma espécie de revolta em votar em um candidato que desafia a intelligentsia americana.
O relatório da Polícia Federal que indiciou Jair Messias Bolsonaro tem mais de 800 páginas, onde o nome de Bolsonaro aparece mais de 600 vezes e está recheado de provas contra o ex-presidente. O ‘domínio do fato’ acontece quando alguém controla e decide a forma e o conteúdo de execução de um plano, do qual é o maior beneficiário. Bolsonaro começou o seu projeto golpista logo após a vitória em 2018, alegando que teria ganhado em primeiro turno e com isso já estava se prevenindo de um possível revés nas próximas eleições, disseminado uma ideia simplista, porém eficaz, ‘pois se ele suspeitou quando venceu, isso lhe garante o direito de suspeitar do sistema quando perder’, uma lógica simplória, é verdade, mas funcional para os seus apoiadores. A suspeição sobre o Sistema Eleitoral do país foi uma das teorias mais repetidas pelos bolsonaristas e a repetição é parte fundamental de qualquer propaganda.
Valdemar Neto, presidente do PL, partido de Bolsonaro, assim como o ex-diretor da Abin -Agência Brasileira de Inteligência- o policial federal Alexandre Ramagem, candidato bolsonarista derrotado nas últimas eleições a prefeitura do Rio de Janeiro, agiram com dolo, segundo o relatório. Ramagem abastecia com dados falsos sobre as urnas eletrônicas os bolsonaristas, sempre prontos a aceitar tudo que viesse do ‘Núcleo Duro’ do seu comando. Para pessoas que acamparam meses em frente aos quartéis pedindo intervenção militar e a volta da ditadura, que oraram para discos voadores, que fizeram saudações nazistas, cantaram o hino nacional à frente de um pneu, enfim, miríades de situações esdrúxulas que ‘bombaram’ como ‘memes’ nas redes sociais, qualquer coisa que as mantivesse nesse delírio era bem-vindo. O relatório sai agora do STF para a PGR -Procuradoria Geral da República, que poderá arquivar ou oferecer denúncia e, nesse caso, encaminhar o caso ao STF, o que parece ser inevitável, só aí começará a Via Crúcis de Bolsonaro e seus asseclas. Os julgamentos e as prisões ainda vão gerar muito debates e controvérsias e como estamos vivendo no ‘Normal Bizarro’, tudo é possível, mesmo o que pareça improvável.
Vinicius Todeschini 28-11-2024