Crónicas do Brasil | 16-08-2022 20:01

Caetano Veloso nos representa

Vinicius Todeschini

Caetano criticou muitas vezes Noel Rosa, o genial compositor carioca, e quando compôs “Dom de Iludir”, ele estava dando uma espécie de resposta a canção de Noel Rosa, “Pra que mentir?”. A canção do compositor baiano termina assim: “Como pode querer que a mulher/Vá viver sem mentir”, respondendo a colocação de Noel que escreveu; “Pra que mentir/Se tu ainda não tens/Esse dom de saber iludir”.

                Caetano Veloso completou oitenta anos e milhões de brasileiros comemoraram assistindo ao seu show transmitido pela televisão em tempo real. Ele preferiu um evento intimista com os três filhos: Moreno, Zeca e Tom, além da participação especial da cantora Maria Bethânia, sua irmã mais nova. O “leãozinho de fogo” chegou aos oitenta no ano mais importante dos últimos tempos, quando o Brasil tem a chance de retomar o caminho da normalidade democrática derrotando nas urnas o pior presidente deste período de redemocratização do país, iniciado com o fim de uma ditadura e que manteve, por 21 anos, o país refratário a um desenvolvimento institucional e democrático real. Caetano esteve exilado em Londres, depois de um breve período preso, e quando voltou ao país foi revendo sua forma de pensar politicamente, ele que se considerava um “liberalóide” foi mudando a sua forma de pensar, principalmente, a partir da leitura do filósofo italiano, Domenico Losurdo, falecido em 2018 aos 77 anos.

 O grande compositor baiano de Santo Amaro da Purificação criou uma obra, onde o Brasil e as suas peculiaridades, belezas e contradições são desfiadas e colocadas em camadas que podem ser captadas em vários níveis. O fato de ter percebido, que a herança maldita do colonialismo no Brasil nunca seria superada da mesma forma que em outros países, o tornou mais preocupado com a nossa democracia e com seus próprios posicionamentos. Em seu livro “Verdade Tropical”, por exemplo, ele se insurgiu contra o fato de imporem uma escrita com parágrafos curtos e decidiu escrever seu livro com longos parágrafos. Esta vontade de contestar o, aparentemente, incontestável o levou a esta fama que rivaliza com a sua própria condição de compositor e intérprete. Suas inúmeras polêmicas com figuras de outras áreas se multiplicaram, é lendária sua polêmica com o saudoso, Paulo Francis, que fez o caminho inverso ao dele, saindo de um trotskismo diletante a um liberalismo anacrônico. Tudo isso o tornou um pensador da vida brasileira sem uma obra filosófica tradicional.   

O que Caetano representa para o Brasil é muito difícil de definir, mas a sua contribuição está no sumo da nossa cultura, onde a sua figura se confunde com a sua obra o tempo todo. A sua postura avançada e inteligente o manteve na proa, ora criando canções que se tornaram clássicas para o cancioneiro brasileiro, ora polemizando com outros autores e personagens, como no exemplo de Noel Rosa e Paulo Francis

Caetano criticou muitas vezes Noel Rosa, o genial compositor carioca, e quando compôs “Dom de Iludir”, ele estava dando uma espécie de resposta a canção de Noel Rosa, “Pra que mentir?”. A canção do compositor baiano termina assim: “Como pode querer que a mulher/Vá viver sem mentir”, respondendo a colocação de Noel que escreveu; “Pra que mentir/Se tu ainda não tens/Esse dom de saber iludir”. Em shows Caetano batia nessa tecla mostrando algumas contradições das letras de Noel. Em “Feitiço da Vila” existem versos que falam que “A vila tem um feitiço sem farofa/Sem vela e sem vintém/Que nos faz bem”, Caetano contesta o colega afirmando que se ele disse que o feitiço da vila é assim também está dizendo que o nosso não é bom e, por aí, segue criticando Noel. Músicas antigas refletem a sua época e os valores cristalizados nela, Noel foi um dos maiores, mas também não escapou disso. As marchinhas de carnaval estão cheias de letras que confirmam o racismo estrutural com a famosa letra de Lamartine Babo, “O teu cabelo não nega” de 1932, quando ele escreveu: “O teu cabelo não nega mulata/Porque és mulata na cor/Mas como a cor não pega mulata/Mulata eu quero o teu amor”.

O que Caetano representa para o Brasil é muito difícil de definir, mas a sua contribuição está no sumo da nossa cultura, onde a sua figura se confunde com a sua obra o tempo todo. A sua postura avançada e inteligente o manteve na proa, ora criando canções que se tornaram clássicas para o cancioneiro brasileiro, ora polemizando com outros autores e personagens, como no exemplo de Noel Rosa e Paulo Francis. E assim foram passando os anos e a figura andrógina deste baiano inquieto se tornou arquetípica para os Brasis, influenciando gerações e criando um ”jeito de corpo” que está posto há muito tempo por aqui. Dialogando com a tradição e tentando inventar novos caminhos ele quase sempre foi feliz, afinal, ninguém acerta o tempo todo. Criou grandes obras que seguirão, indefinidamente, através do tempo e como é descendente de uma família longeva, sua mãe -Dona Canô- faleceu aos 105 anos, se espera uma vida longa para esse grande autor e agitador da cena cultural brasileira. Ao final do show agradeceu as mulheres que são as mães dos seus filhos e tudo que elas lhe ensinaram, por fim também falou dos caras, que também foram importantes, embora tenham sido fugazes, como ele declarou. Quem compôs “Camaleoa” só poderia ser um “CamaLeão”.

Vinicius Todeschini 15-08-2022

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