Opinião | 16-02-2024 13:25

O “bloco soviético” mais os lobbies ligados às energias renováveis

Se é verdade que o acidente de Three Mile Island, em 1979, teve influência na condução da política de construção de reactores nucleares, em particular nos EUA, é inteiramente falso que “o bloco soviético” tivesse tido influência na travagem dos programas.

O texto apresentado a seguir integra um outro muito mais extenso em que se analisa a oposição à energia nuclear civil em vários países do mundo (EUA, França, Alemanha, Suécia, Espanha, Áustria, Itália, Suíça, Portugal), o que conduziu ao impasse desta forma de energia a que se vem assistindo desde os anos 70 e 80 do Século XX. Trata-se de uma matéria nunca abordada com esta abrangência na bibliografia internacional. E é a continuação de dois textos já aqui publicado com o título “O mito da utilização pacífica da energia nuclear” .
O autor do texto colheu durante anos informação sobre o assunto em revistas de energia nuclear, algumas das quais não se eximiam a publicar os acidentes, as avarias, as dificuldades e erros tecnológicos, a substituição de partes fundamentais e de elevado custo dos reactores, além das acções de oposição às centrais nucleares..
Na parte agora apresentada, inicia-se o exame da falsa justificação da grande decadência da energia nuclear civil nos países democráticos, num texto publicado na revista da Ordem dos Engenheiros.

O “bloco soviético” mais os lobbies ligados às energias renováveis

O artigo referido no primeiro dos textos desta série, publicado na revista Ingenium da Ordem dos Engenheiros, da autoria dos engenheiros Pedro Sampaio Nunes e Bruno Soares Gonçalves, faz a seguinte afirmação: «O acidente de Three Mile Island e a atividade dos lobbies ligados a outras formas de energia, com o apoio do bloco soviético, travou o desenvolvimento de novos reactores globalmente».

Se é verdade que o acidente de Three Mile Island, em 1979, teve influência na condução da política de construção de reactores nucleares, em particular nos EUA, é inteiramente falso que “o bloco soviético” tivesse tido influência na travagem dos programas.

Pelo contrário, a URSS desenvolveu um programa nuclear intenso[1] com introdução de diferentes tipos de reactores, o RMBK e o VVER, que implementou também nos países do Pacto de Varsóvia[2], construiu instalações industriais de enriquecimento de urânio, de produção de elementos de combustível, de reprocessamento e fomentou a exploração de urânio no seu território e no de outras regiões das suas repúblicas. Na cena internacional, defendeu a “utilização pacífica” da energia nuclear e criticou duramente as organizações ambientalistas que nos EUA e na Europa atacavam essa utilização – mas também a produção de armas nucleares. O seu menosprezo pelas críticas que essas organizações faziam, levou mesmo a uma menor atenção aos problemas de segurança, considerando que a tecnologia era inteiramente segura, como agora afirmam os autores do citado artigo. Esse menosprezo levou, por exemplo, à não construção do espesso contentor de betão que as empresas construtoras ocidentais utilizavam para envolver e proteger o núcleo do reactor. Nos grupos soviéticos iniciais, o núcleo era envolvido apenas por um contentor de aço no interior de edifícios idênticos aos das indústrias não nucleares. Nos reactores ocidentais, além do contentor de betão também existia, e ainda existe, um contentor de aço, idêntico aos soviéticos.

Essa visão soviética não foi aceite, por exemplo, pela Finlândia, onde a URSS construiu a central de Loviisa com dois reactores VVER, mas em que teve de instalar os contentores de betão por imposição das autoridades filandesas. E, depois, a central de Oikiluoto, também com dois reactores.

Aliás, além deste país, a URSS empenhou-se na propaganda da “utilização pacífica” da energia nuclear em outros países e teve um papel importante na propaganda nuclear na Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA). Em Portugal, nos anos 80, quando a EDP se propunha concretizar um programa nuclear com vários reactores, missões dos EUA, França, República Federal Alemã, aqui se deslocaram para apresentarem os seus reactores, e uma missão da AIEA as virtudes da energia nuclear. Uma missão soviética veio a Portugal com o mesmo fim. Apresentou, até, uma exposição na FIL, com a colaboração da sua embaixada. Os nuclearistas da EDP e do aparelho de Estado pensavam, assim, entalar o Partido Comunista, que também se opunha à construção de uma central nuclear.

É totalmente falsa, pois, a afirmação feita naquele texto da Ingenium. Mais adiante veremos quais as principais forças que em Portugal se opuseram ao nuclear.

Por outro lado, os Partidos Comunistas em geral, defendiam a “utilização pacífica” da energia nuclear e o português sempre o fez, embora nos anos 70 e 80 rejeitasse o programa que os governos de então pretendiam implementar.

Os Partidos Comunistas o que criticavam era a produção de armas nucleares e opunham-se à sua instalação nos países onde tinham expressão. Mas não eram apenas eles. Numerosas organizações pacifistas e ambientalistas também o fizeram em todo o mundo. E numerosos intelectuais e cientistas. São conhecidas as posições, nomeadamente de Einstein e de Openheimer, considerado o pai da bomba atómica estadounidense, este logo a seguir à sua utilização pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki. Também Otto Hahn, que descobriu em 1938 a fissão nuclear do urânio, a base da energia nuclear. E a família Curie, investigadora neste domínio. E as do filósofo e matemático, social-democrata inglês Bertrand Russel, o qual organizou grandes manifestações em muitos países, utilizando o célebre símbolo da paz.

Em 1958, foi publicado em Portugal pela editora ContraPonto e impresso na Imprensa do Douro, da Régua, o livrinho A Bomba Atómica – O Futuro do Homem, de Karl Jasperss, um alemão discípulo de Kierkegaard, em que se condenava as acções de Hiroshima e Nagasaki e a corrida às armas nucleares.

Nesta publicação figurava a célebre frase de Albert Einstein dirigida aos sábios italianos sobre o armamento nuclear das principais potências: «A potência desencadeada pelo átomo tudo modificou, salvo a nossa maneira de pensar e, deste modo, somos arrastados para uma catástrofe sem precedentes. Para que a humanidade possa sobreviver, é indispensável uma nova maneira de pensar». Figuravam, também, as posições de muitos outros cientistas.

Em 1948, realizou-se em Wroclaw, na Polónia, a Congresso Mundial dos Intelectuais para a Paz, em que participaram muitas dezenas de intelectuais de todo o mundo, dos mais conhecidos em todas as áreas das artes e das ciências: 53 franceses, como Picasso, Fernand Léger, Paul Éluard, Henri Lefebvre, Claude Autant-Lara, Fréderic e Irene Joliot-Curie, Roger Vaillant, Julien Benda, etc; 67 italianos, como Luchino Visconti, Giuseppe di Santis, Cesare Zavatinni, Elio Vitorini, Cesare Pavese, etc; 19 soviéticos, como Cholokov, Ehrenburg, Pudovkine; etc; brasileiros, como Jorge Amado, Portinari, Oscar Niemeyer, etc; ingleses.como Graham Green e o Deão de Cantuária; delegações dos EUA, Suiça, Chile, neste caso com Pablo Neruda e outros; africanos como Léopold Senghor e Aimé Cesaire. Portugal participou com uma delegação composta por Alves Redol, que falou em nome da delegação, Fernando Lopes Graça, o psiquiatra João dos Santos e mulher e o físico Manuel Valadares e mulher – tendo este sido demitido da Universidade portuguesa pelo governo de Salazar, o primeiro cientista português a trabalhar com a radioactividade, que colaborou com o casal Curie e chegou a dirigir um sector do mundialmente prestigiado Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS)[3], em França. A delegação portuguesa foi tratada com uma atenção especial para evitar a prisão dos membros que viviam em Portugal quando aqui regressassem.

Na sequência deste Congresso, realizaram-se numerosas reuniões organizadas pela Conferência Mundial da Paz, de que se destacou o Apelo de Estocolmo em 19 de Março de 1950, assinado por mais de 230 milhões de pessoas pelo desarmamento nuclear e a prevenção da guerra atómica. Neste domínio é que os comunistas e outras forças de esquerda se empenharam nos anos 50 e seguintes.

Em todos estes eventos, sempre defenderam a “utilização pacífica “ da energia nuclear, embora como se viu, o nuclear civil e o nuclear militar tenham andado sempre de mãos dadas nos países nucleares. No entanto, o não recurso às armas nucleares era uma aspiração dos povos, que, então, conheciam bem as consequências da guerra nuclear, pois Hiroshima e Nagasaki estavam relativamente próximos e presentes na comunicação social e nos escritos dos intelectuais.

De seguida, iremos referir oposições e lutas, algumas das quais violentas, contra a energia nuclear civil em vários países, dando relevo aos anos em que a oposição em Portugal foi decisiva para se abandonar esta via.


[1] A Federação Russa ainda é hoje um dos países com maior número de reactores.

[2] Hungria, Bulgária, Checoslováquia, República Democrática Alemã. A Roménia pretendendo afirmar a sua autonomia relativamente à União Soviética, optou pelos reactores do tipo CANDU. Países da antiga URSS, como a Bielorússia, a Ucrânia, a Arménia, possuem reactores nucleares de fabrico soviético. A Lituânia encerrou o seu reactor em 2009. A Polónia estava a construir um reactor quando se deu o acidente de Chernobyl, abandonando a sua construção. Da antiga Checoslováquia, existem reactores na Eslováquia e na República Checa..

[3] No CNRS realizaram-se parte das investigações sobre o nuclear civil, mas a maioria e mais importantes foram realizadas no CEA, as quais conduziram à construção de tipos de reactor a urânio natural, arrefecimento a gás, com moderação por grafite, mais tarde abandonados em França em favor do reactor PWR, com grande oposição dos cientistas daquelas entidades. A maioria dos cientistas do CNRS eram de esquerda e mesmo comunistas, como Manuel Valadares.

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