O “bloco soviético” mais os lobbies ligados às energias renováveis
Se é verdade que o acidente de Three Mile Island, em 1979, teve influência na condução da política de construção de reactores nucleares, em particular nos EUA, é inteiramente falso que “o bloco soviético” tivesse tido influência na travagem dos programas.
O texto apresentado a seguir integra um outro muito mais extenso em que se analisa a oposição à energia nuclear civil em vários países do mundo (EUA, França, Alemanha, Suécia, Espanha, Áustria, Itália, Suíça, Portugal), o que conduziu ao impasse desta forma de energia a que se vem assistindo desde os anos 70 e 80 do Século XX. Trata-se de uma matéria nunca abordada com esta abrangência na bibliografia internacional. E é a continuação de dois textos já aqui publicado com o título “O mito da utilização pacífica da energia nuclear” .
O autor do texto colheu durante anos informação sobre o assunto em revistas de energia nuclear, algumas das quais não se eximiam a publicar os acidentes, as avarias, as dificuldades e erros tecnológicos, a substituição de partes fundamentais e de elevado custo dos reactores, além das acções de oposição às centrais nucleares..
Na parte agora apresentada, inicia-se o exame da falsa justificação da grande decadência da energia nuclear civil nos países democráticos, num texto publicado na revista da Ordem dos Engenheiros.
O “bloco soviético” mais os lobbies ligados às energias renováveis
O artigo referido no primeiro dos textos desta série, publicado na revista Ingenium da Ordem dos Engenheiros, da autoria dos engenheiros Pedro Sampaio Nunes e Bruno Soares Gonçalves, faz a seguinte afirmação: «O acidente de Three Mile Island e a atividade dos lobbies ligados a outras formas de energia, com o apoio do bloco soviético, travou o desenvolvimento de novos reactores globalmente».
Se é verdade que o acidente de Three Mile Island, em 1979, teve influência na condução da política de construção de reactores nucleares, em particular nos EUA, é inteiramente falso que “o bloco soviético” tivesse tido influência na travagem dos programas.
Pelo contrário, a URSS desenvolveu um programa nuclear intenso[1] com introdução de diferentes tipos de reactores, o RMBK e o VVER, que implementou também nos países do Pacto de Varsóvia[2], construiu instalações industriais de enriquecimento de urânio, de produção de elementos de combustível, de reprocessamento e fomentou a exploração de urânio no seu território e no de outras regiões das suas repúblicas. Na cena internacional, defendeu a “utilização pacífica” da energia nuclear e criticou duramente as organizações ambientalistas que nos EUA e na Europa atacavam essa utilização – mas também a produção de armas nucleares. O seu menosprezo pelas críticas que essas organizações faziam, levou mesmo a uma menor atenção aos problemas de segurança, considerando que a tecnologia era inteiramente segura, como agora afirmam os autores do citado artigo. Esse menosprezo levou, por exemplo, à não construção do espesso contentor de betão que as empresas construtoras ocidentais utilizavam para envolver e proteger o núcleo do reactor. Nos grupos soviéticos iniciais, o núcleo era envolvido apenas por um contentor de aço no interior de edifícios idênticos aos das indústrias não nucleares. Nos reactores ocidentais, além do contentor de betão também existia, e ainda existe, um contentor de aço, idêntico aos soviéticos.
Essa visão soviética não foi aceite, por exemplo, pela Finlândia, onde a URSS construiu a central de Loviisa com dois reactores VVER, mas em que teve de instalar os contentores de betão por imposição das autoridades filandesas. E, depois, a central de Oikiluoto, também com dois reactores.
Aliás, além deste país, a URSS empenhou-se na propaganda da “utilização pacífica” da energia nuclear em outros países e teve um papel importante na propaganda nuclear na Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA). Em Portugal, nos anos 80, quando a EDP se propunha concretizar um programa nuclear com vários reactores, missões dos EUA, França, República Federal Alemã, aqui se deslocaram para apresentarem os seus reactores, e uma missão da AIEA as virtudes da energia nuclear. Uma missão soviética veio a Portugal com o mesmo fim. Apresentou, até, uma exposição na FIL, com a colaboração da sua embaixada. Os nuclearistas da EDP e do aparelho de Estado pensavam, assim, entalar o Partido Comunista, que também se opunha à construção de uma central nuclear.
É totalmente falsa, pois, a afirmação feita naquele texto da Ingenium. Mais adiante veremos quais as principais forças que em Portugal se opuseram ao nuclear.
Por outro lado, os Partidos Comunistas em geral, defendiam a “utilização pacífica” da energia nuclear e o português sempre o fez, embora nos anos 70 e 80 rejeitasse o programa que os governos de então pretendiam implementar.
Os Partidos Comunistas o que criticavam era a produção de armas nucleares e opunham-se à sua instalação nos países onde tinham expressão. Mas não eram apenas eles. Numerosas organizações pacifistas e ambientalistas também o fizeram em todo o mundo. E numerosos intelectuais e cientistas. São conhecidas as posições, nomeadamente de Einstein e de Openheimer, considerado o pai da bomba atómica estadounidense, este logo a seguir à sua utilização pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki. Também Otto Hahn, que descobriu em 1938 a fissão nuclear do urânio, a base da energia nuclear. E a família Curie, investigadora neste domínio. E as do filósofo e matemático, social-democrata inglês Bertrand Russel, o qual organizou grandes manifestações em muitos países, utilizando o célebre símbolo da paz.
Em 1958, foi publicado em Portugal pela editora ContraPonto e impresso na Imprensa do Douro, da Régua, o livrinho A Bomba Atómica – O Futuro do Homem, de Karl Jasperss, um alemão discípulo de Kierkegaard, em que se condenava as acções de Hiroshima e Nagasaki e a corrida às armas nucleares.
Nesta publicação figurava a célebre frase de Albert Einstein dirigida aos sábios italianos sobre o armamento nuclear das principais potências: «A potência desencadeada pelo átomo tudo modificou, salvo a nossa maneira de pensar e, deste modo, somos arrastados para uma catástrofe sem precedentes. Para que a humanidade possa sobreviver, é indispensável uma nova maneira de pensar». Figuravam, também, as posições de muitos outros cientistas.
Em 1948, realizou-se em Wroclaw, na Polónia, a Congresso Mundial dos Intelectuais para a Paz, em que participaram muitas dezenas de intelectuais de todo o mundo, dos mais conhecidos em todas as áreas das artes e das ciências: 53 franceses, como Picasso, Fernand Léger, Paul Éluard, Henri Lefebvre, Claude Autant-Lara, Fréderic e Irene Joliot-Curie, Roger Vaillant, Julien Benda, etc; 67 italianos, como Luchino Visconti, Giuseppe di Santis, Cesare Zavatinni, Elio Vitorini, Cesare Pavese, etc; 19 soviéticos, como Cholokov, Ehrenburg, Pudovkine; etc; brasileiros, como Jorge Amado, Portinari, Oscar Niemeyer, etc; ingleses.como Graham Green e o Deão de Cantuária; delegações dos EUA, Suiça, Chile, neste caso com Pablo Neruda e outros; africanos como Léopold Senghor e Aimé Cesaire. Portugal participou com uma delegação composta por Alves Redol, que falou em nome da delegação, Fernando Lopes Graça, o psiquiatra João dos Santos e mulher e o físico Manuel Valadares e mulher – tendo este sido demitido da Universidade portuguesa pelo governo de Salazar, o primeiro cientista português a trabalhar com a radioactividade, que colaborou com o casal Curie e chegou a dirigir um sector do mundialmente prestigiado Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS)[3], em França. A delegação portuguesa foi tratada com uma atenção especial para evitar a prisão dos membros que viviam em Portugal quando aqui regressassem.
Na sequência deste Congresso, realizaram-se numerosas reuniões organizadas pela Conferência Mundial da Paz, de que se destacou o Apelo de Estocolmo em 19 de Março de 1950, assinado por mais de 230 milhões de pessoas pelo desarmamento nuclear e a prevenção da guerra atómica. Neste domínio é que os comunistas e outras forças de esquerda se empenharam nos anos 50 e seguintes.
Em todos estes eventos, sempre defenderam a “utilização pacífica “ da energia nuclear, embora como se viu, o nuclear civil e o nuclear militar tenham andado sempre de mãos dadas nos países nucleares. No entanto, o não recurso às armas nucleares era uma aspiração dos povos, que, então, conheciam bem as consequências da guerra nuclear, pois Hiroshima e Nagasaki estavam relativamente próximos e presentes na comunicação social e nos escritos dos intelectuais.
De seguida, iremos referir oposições e lutas, algumas das quais violentas, contra a energia nuclear civil em vários países, dando relevo aos anos em que a oposição em Portugal foi decisiva para se abandonar esta via.
[1] A Federação Russa ainda é hoje um dos países com maior número de reactores.
[2] Hungria, Bulgária, Checoslováquia, República Democrática Alemã. A Roménia pretendendo afirmar a sua autonomia relativamente à União Soviética, optou pelos reactores do tipo CANDU. Países da antiga URSS, como a Bielorússia, a Ucrânia, a Arménia, possuem reactores nucleares de fabrico soviético. A Lituânia encerrou o seu reactor em 2009. A Polónia estava a construir um reactor quando se deu o acidente de Chernobyl, abandonando a sua construção. Da antiga Checoslováquia, existem reactores na Eslováquia e na República Checa..
[3] No CNRS realizaram-se parte das investigações sobre o nuclear civil, mas a maioria e mais importantes foram realizadas no CEA, as quais conduziram à construção de tipos de reactor a urânio natural, arrefecimento a gás, com moderação por grafite, mais tarde abandonados em França em favor do reactor PWR, com grande oposição dos cientistas daquelas entidades. A maioria dos cientistas do CNRS eram de esquerda e mesmo comunistas, como Manuel Valadares.
Finlândia, Ucrânia, República Checa, Hungria, Bulgária, Lituânia têm grupos nucleares de fabrico russo. São, certamente, alimentadas com urânio enriquecido russo. Mas ninguém fala desta dependência da Rússia, mais uma, além de muitas outras. Só se fala de gás natural e petróleo.