Matança do porco à moda antiga
AMAR revive tradição em Marinhais
Queres ver o teu corpo? Mata o teu porco. O ditado é tão velho como a tradição revivida em Marinhais no passado sábado, 30 de Novembro.Uma porca de 120 quilos serviu de atracção para a festa, que juntou à mesa cento e cinquenta pessoas no salão de festas da vila para um jantar de substância. O MIRANTE acompanhou o reviver da tradição da matança, organizada pela AMAR, Associação de Marinhais para a defesa do património cultural e natural da vila, que tratou de tudo para que esta fosse uma operação que respeita ao mesmo tempo a tradição e a lei.
Tradição e legalidade foram cumpridas à risca pela associação AMAR, de Marinhais, que reviveu no passado sábado a tradição da matança do porco, numa festa que juntou cerca de 150 pessoas num jantar à base da carne do animal abatido durante a tarde.Carlos Montemor, presidente da direcção da AMAR quis fazer tudo como manda a lei e garantir que ao jantar as pessoas que se iriam sentar à mesa estavam a comer carne de qualidade.Afinal uma matança em casa, continua a ser legal, tendo apenas que se respeitar alguns procedimentos que não chocam totalmente com a tradição. “Foi preciso fazer uma carta ao director dos serviços de veterinária da Direcção Regional de Agricultura do Ribatejo e Oeste a dar conta do que íamos fazer e solicitar a presença de um médico veterinário no dia do abate”, disse a O MIRANTE, Carlos Montemor.Depois, quase tudo é feito como manda a tradição. Quase, porque para além da presença obrigatória do veterinário, o decreto-lei 28/96, de 2 de Abril, obriga ainda a que o porco seja submetido a um choque eléctrico através de um aparelho de electronarcose que tenha passagem de corrente com intensidade de um ampere para que se faça o atordoamento do animal antes do abate e garantir que os subprodutos são enterrados a um metro de profundidade e cobertos com cal viva.À hora marcada, o veterinário Luís Martins apresentou-se para a inspecção do animal. Sérgio, o talhante da vila, iria desferir o golpe mortal, depois do animal atordado com o choque eléctrico e pendurado por uma das patas na pá de uma retroescavadora.O homem que desfere o golpe fatal começou a trabalhar num talho aos 15 anos de idade e já perdeu a conta aos porcos que abateu ao longo de quase vinte anos de trabalho. Hoje a carne consumida no talho vem toda do matadouro de Santarém, mas o Sérgio continua a ir a casa de algumas famílias para matar o porco e fazer a desmancha.O choque eléctrico deixa o animal atordoado e evita as habituais convulsões no animal, que numa matança tradicional obrigam a que muitos braços segurem o porco em cima da banca de madeira, mas o aparelho de electronarcose não é fácil de arranjar, como testemunhou Carlos Montemor.Depois de desferido o golpe, no pescoço do animal previamente lavado, Eurídice Francisco e Irene Simões apararam o sangue para um alguidar de barro, contendo sal, dentes de alho e vinagre. O sangue tem de ser mexido continuamente até arrefecer, para não coagular e ser depois usado nas tradicionais morcelas. Às quatro da tarde o primeiro foguete sobe no ar a anunciar que a matança está feita. O porco é deitado no chão e chamuscado com tojo e caruma a arder e raspado depois com uma telha de canudo, como manda a tradição. “Antigamente era usada a carqueja para chamuscar o porco, mas depois passou a ser feita com caruma e tojo, porque a carqueja é um arbusto que começou a desaparecer aqui na nossa zona”, diz Carlos Montemor.Hoje é vulgar o porco ser chamuscado com um aparelho que funciona a gás e é assim que Sérgio dá os últimos retoques na operação de remoção dos pêlos do animal, que é depois esfregado com placas de cortiça, sal e água para lavar bem a pele.O animal é depois pendurado pelos tendões das patas traseiras e cortado de alto a baixo. Coração, pulmões, fígado e rins são removidos com cuidado e lavados com vinho branco e depois saem as tripas que as mulheres vão lavar cuidadosamente para serem cozidas e cheias para fazer as morcelas. Depois de lavadas com água corrente, as tripas são esfregadas com uma mistura de rodelas de limão, laranja, cebola, sal e ortelã, para tirar o cheiro característico.O estômago do animal (bucho) é também despejado e lavado para cozer com as tripas e depois de removida a pele interior pode ser assado na brasa e temperado de sal e pimenta para um petisco também tradicional.A bexiga do porco é cheia de ar, soprado através de uma cana e atada com uma guita para fazer uma bola que um dos miúdos aproveita para chutar no pátio da comissão de festas. Eram assim as melhores bolas de futebol de antigamente, esfregadas na cinza para que a terra não se colasse na bola.Enquanto se procede à desmancha, cerca de 15 mulheres vão começando na cozinha a preparar o jantar.O rim, o fígado e as febras são assados na brasa para o petisco que abre a festa, temperadas depois com sal e alho picado. Duas horas e meia depois da matança já os convivas provam o porco.Para o guisado são aproveitados também o rim, o fígado, e as febras que são guisados com batatas temperados de alho, sumo de limão, azeite e vinho branco, num refogado feito com a gordura do próprio animal.As morcelas são feitas com a gordura e temperadas de cravinho, cominhos, erva-doce misturados depois com farinha de milho, cebola e salsa picada e o sangue previamente recolhido do animal.O chispe, a cabeça e a carne são cozidos para a sopa que foi cozinhada como antigamente, apenas com batatas e couves, já que a modernidade foi depois acrescentado outros ingredientes ao prato tradicional que hoje muitas pessoas fazem com cenouras e nabos.Veterinário brasileiro fiscalizou tradição portuguesaLuís Martins foi o veterinário que procedeu à inspecção sanitária na porca que serviu para honrar a tradição da matança em Marinhais. Filho de pais portugueses, nasceu em Angola, mas durante 22 anos viveu no Brasil, para onde emigrou com a família e onde bebeu a cultura e as tradições.No sábado foi ele quem assistiu, com agrado, ao reviver de uma tradição da qual não conhecia muitos pormenores. Fez o curso de veterinária no Brasil e hoje é inspector sanitário contratado a prazo pela Direcção Regional de Agricultura do Ribatejo e Oeste. Chegou a Portugal em 1997, com vontade de ficar com a mulher e dois filhos e quase apanhava uma desilusão quando quis exercer a profissão em Portugal.“Para que o meu curso fosse reconhecido por uma universidade portuguesa, teria de me submeter a um teste de avaliação, onde era abordada praticamente toda a matéria do curso o que iria obrigar praticamente a fazer de novo todos os estudos”, referiu. Uma coisa impensável para quem há sete anos exercia a profissão no Brasil, com o curso feito numa universidade federal. “Felizmente a Ordem dos Veterinários portuguesa tem um acordo mútuo com a ordem brasileira, que permitiu que o meu curso fosse reconhecido em poucos dias, doutra forma não sei se conseguiria trabalhar na minha profissão”, disse a O MIRANTE.Feliz por ter vivido em pleno uma tradição portuguesa, o veterinário acompanhou, até no jantar, a actividade proporcionada pela AMAR, a quem reconheceu um trabalho exemplar, até porque este terá sido o primeiro abate feito na região que obedeceu a todos os procedimentos legais, cumprindo na mesma a tradição.
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