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Antigamente havia pessoas que iam à feira propositadamente para serem catadas

Uma feira antiga com preços em euros

Abrantes recria Feira de São Matias como era há 327 anos

Nas bancas havia repolhos verdinhos, laranjas de encher o olho, azeite e mel caseiro, vinho pisado com os pés. Mulheres e homens vestiam roupas que já não se vêem há séculos e soltavam pregões. No sábado, em Abrantes, recriou-se a Feira de São Matias como era há 327 anos. Com uma nota de actualidade – o preço dos produtos estavam marcados em euros. Para facilitar as contas...No meio dos serviços oferecidos aos visitantes havia um que chamava a atenção. Umas meninas dispunham-se a catar piolhos a quem tivesse comichão na cabeça.

No pavilhão dos sabores da Feira de São Matias vendia-se tudo o que a terra pode dar. As mulheres usavam saias compridas e rodadas e lenços nas cabeças, os homens fatos de lavrador. No sábado à tarde, em Alferrarede, Abrantes, dezenas de pessoas recriaram a feira como ela era há 327 anos atrás.Liliana Baptista tentava equilibrar os pratos da velha balança, mas as coisas não lhe estavam a sair lá muito bem. “Puseram batatas a mais”, queixava-se, olhando para as ditas e para o peso de quilo depositado no outro lado. Vestida de camponesa, a jovem de 18 anos vestia a pele de uma vendedora de outras eras que vinha de Casais de Revelhos vender os produtos da sua horta na primeira feira de São Matias, em Abrantes.Era a primeira vez que Liliana participava numa feira deste género, uma iniciativa da Câmara Municipal de Abrantes que convidou os ranchos folclóricos do concelho e a Escola Secundária Doutor Manuel Fernandes a reviverem usos e costumes passados.A nossa reportagem não provou mas, pelo que pôde ouvir, as petingas de escabeche de Alberto Correia de Matos estavam de se lhe tirar o chapéu. “Ora prove lá, duas petinguinhas em cima de uma fatia de broa de milho caseiro. Custam apenas 50 cêntimos”, dizia o cantor do Rancho Folclórico de São Miguel de Rio Torto. E, já agora, um copito de vinho caseiro, “pisado com os pés”, para ajudar a empurrar a comida. Mas não em demasia, porque 14,5 é muito grau de alcoolemia. A única coisa que falhou na recriação foi mesmo a moeda de troca. Os papelinhos expostos nas bancas marcavam os produtos não na moeda que se usava no século XVIII mas em euros. Imposições de mercado, já se vê...Alberto Correia de Matos, que tirou a carta de cozinheiro em terras de França, lembra-se muito bem como era a Feira de São Matias do seu tempo de meninice. “Comecei a vir vender na feira tinha nove anos. Naquela altura fazia os sete quilómetros descalço, em cima do gelo e tudo, porque o meu pai não tinha dinheiro para me comprar sapatos”, diz, adiantando que os calos que ganhou serviam de “sapatos”.“Vinha carregado com abóboras, feijão e outras coisas, como galinhas e coelhos”, refere Alberto Matos, ajeitando a fatiota que pagou ele mesmo, porque o rancho não tinha dinheiro para fazer os fatos.A nobreza passeava também pelo pavilhão. Nunca compravam nada, limitavam-se a exibir as suas roupas de sedas e cetins de fazer corar de inveja os que tentavam ganhar para o pão do dia a dia, como dizia o “casal” Tatiana Henriques e Fábio Pires, alunos da Escola Secundária Doutor Manuel Fernandes.“Olhó piolho, venham catar o piolho”, gritavam as moças que, em posição de ioga, “tiravam” os incómodos bichinhos das cabeças dos lavradores. Marília Isabel catava na perfeição – começava pelo couro cabeludo, agarrava pequenas mechas de cabelos e zás, mais um piolho morto. “Antigamente havia pessoas que vinham de propósito à feira para serem catadas porque não havia tempo para isso lá em casa”, dizia a jovem, sem tirar os dedos dos cabelos da “piolhosa” que tinha diante de si.Naquela tarde de sábado, o pavilhão dos sabores reviveu uma feira com mais de 300 anos, uma das raras ocasiões em que o povo se misturava com a nobreza. Os visitantes, contudo, tardavam em largar os euros – “vendia-se muito mais antigamente”, dizia um produtor. Mas a menos de cem metros do local, um supermercado estava cheio...Margarida Cabeleira
Antigamente havia pessoas que iam à feira propositadamente para serem catadas

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