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Embalado pelo barulho das rodas

Embalado pelo barulho das rodas

José Caetano Paulino, 78 anos, moleiro

É o último dos moleiros da Zibreira. José Caetano Paulino, 78 anos, nasceu a ouvir o barulho das azenhas à beira do rio Almonda. O som, quase ensurdecedor para quem não está habituado, servia-lhe de música de embalar. “Dormia melhor quando o moinho estava a trabalhar”, recorda.

Toneladas e toneladas de grãos de trigo, centeio e milho, principalmente branco, foram transformadas em farinha nas mós de pedra das azenhas do Almonda. Actualmente poucos e raros são os moinhos que continuam em funcionamento. Na Zibreira resta o de José Paulino, agora entregue a um dos filhos, e em todo o percurso do rio sobram dedos de uma mão para contar os que ainda trabalham.José Paulino começou a trabalhar com o pai. Ajudava na faina para que é preciso ter vocação e jeito. “Vi muitos que não foram capazes de fazer nada, eu sempre arranjei dinheiro com o moinho”, diz.Aos 14 anos, numa sociedade com um amigo, comprou um vigésimo da lotaria. Saiu-lhe a sorte grande: 37.500 escudos a dividir por dois. O pai depositou-lhe o dinheiro no banco e aos 18 anos José Paulino levantou-o e montou o seu próprio negócio com o irmão. “Fomos para o moinho mais abaixo, em Porto Carneiro, mas tive de apartar sociedade passado pouco tempo. O meu irmão não percebia nada daquilo”.Para complicar mais as coisas, José Paulino foi chamado para cumprir o serviço militar, de onde, apesar dos esforços, foi difícil sair. “Tinha tudo para me livrar e não me queriam mandar a uma junta médica”. Um dia fartou-se e resolveu escrever uma carta a Salazar. Ameaçou o médico que a entregaria ao chefe do governo se não fosse chamado pela junta. “Remédio santo. Fui nesse mesmo dia. Então se eu tinha radiografias de uma pleurisia que por pouco não me matou, se já tinha pago dois contos e quinhentos, andava lá a fazer o quê? Aquilo era para eles. Eu tinha o meu negócio e estava a perder muito dinheiro todos os dias”.Da tropa em Lisboa, o 4-18 tem algumas recordações do mundo do fado. Foi colega do filho de Hermínia Silva e lembra-se de Amália Rodrigues, nos seus primeiros tempos. “Eu levava sempre chouriços de casa e o filho da Hermínia convidou-me para ir a casa da mãe comer uma sopa e eu fui e trataram-me muito bem. Queriam que fosse mais vezes, mas eu não quis, aquela gente era muito complicada”.De regresso à Zibreira, José Paulino continuou o negócio dos moinhos. Desentendido com o irmão foi alugar dois moinhos entre Lapas e a Ribeira Branca, o do Pau e o do Pego. “E fiz dinheiro, mas quando recomecei não tinha um tostão. Comprei três ou quatro sacos de trigo a um lavrador e fiquei a dever. Mas a roda do moinho do Pego era a melhor que havia. Tinha uma força... Olhe, andava tão depressa e fazia tanto barulho que um dia um homem que trabalhava comigo abalou a fugir do moinho com medo”.Anos depois, comprou a azenha da Zibreira, bem perto do sítio onde foi criado, e por lá ficou. “O moinho nunca parava noite e dia. Comprava o cereal e andava por essas serras a vender. Ao princípio era com mulas, depois passei para as camionetas.”A mulher cuidava do moinho enquanto ele andava a vender farinha e a comprar os cereais. As suas histórias não acabam nunca. No tempo da II Guerra Mundial, com as senhas de racionamento, José Paulino não se perdeu. Apagava o que estava escrito com lixívia e alterava os números. Conhecia os armazenistas todos, as grandes casas agrícolas, sabia quando o preço ia subir e antes que fosse tarde comprava o que podia. “Uma vez comprei 400 toneladas de milho a 24 tostões, tinham-me dito que ia subir, passado uma semana passou para 37 tostões, isto é que foi ganhar dinheiro.... É preciso ter gosto e jeito”.Corria o país inteiro e até Espanha e França. “Uma altura, resolvi mesmo ir a França e a Espanha, mas jurei para nunca mais. Perdi-me vezes sem conto. Estava a ver que não saía de lá. Comecei a fazer os negócios em Portugal”.Ia para Lisboa, varria o resto dos armazéns – “aquilo dava uma coceira, que nem imagina” – comprava o milho que vinha de Angola: “Os outros diziam que o milho não prestava porque era muito seco. Fizessem como eu, quatro sacas de milho e um regador de água e pronto já ficava menos seco. E, se o milho era bom, fazia uma farinha branquinha que era um regalo”.O moinho, para além do negócio, era o seu mundo. Tudo tinha que estar varrido e limpinho, por causa dos ácaros e porque “é assim que deve ser”. Foi modernizando a maquinaria e se a força da água continua a fazer rodar as cinco mós do moinho, outros equipamentos para expurgar, transportar a farinha e acondicioná-la dentro dos sacos são movidos a energia eléctrica. José Paulino esteve sempre atento aos novos métodos. Ao modo de fazer mais e melhor farinha em menos tempo, porque a força da água e as azenhas nunca paravam. Margarida Trincão
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