“O mundo dos toiros é corrupto ao mais alto nível”
Manuel Jorge de Oliveira é um crítico do rumo que a festa brava tomou
Cresceu paredes-meias com a cocheira da casa Ortigão Costa em Azambuja. Aos seis anos começou a montar a cavalo e a perseguir o sonho de ser cavaleiro. Manuel Jorge de Oliveira, apontado como um dos melhores de sempre, tem 50 anos e já leva mais de trinta como profissional, mas desiludiu-se com o rumo que a festa levou. É a criação de cavalos e a equitação que ocupam os seus dias.
Tem como filosofia não apadrinhar muitos cavaleiros. Esteve na alternativa de Paulo Jorge Ferreira, um cavaleiro de Azambuja, e na de Carlos Arruda. É uma estratégia?Não estou de acordo com as alternativas que se tiram com esta facilidade. É uma arte muito bonita e difícil e quando se dão alternativas assim em vez de se dar categoria à arte está a tirar-se. Quando se obriga as pessoas a pagar um bilhete para ir para uma praça de toiros tem que haver garantias. Nem toda a gente pode jogar no Benfica ou no Sporting. Há muitos cavaleiros que sendo boas pessoas deveriam levar carreira de amadores e não como profissionais.Quer dizer com isso que há falta de qualidade?Só deve ser cavaleiro quem tiver gabarito artístico já de um certo nível para garantir um bom espectáculo.Mas isso será culpa também dos cavaleiros da praça que cedem a alternativa.Em Portugal mistura-se muito profissionalismo com família e amigos. Eu, que vou muitas vezes ao estrangeiro, não sinto lá isso. Um pai não olha para o filho como pai no plano profissional. A gente cá, mesmo nos negócios, ouvimos dizer: “Sou seu amigo veja lá o que pode fazer”. É uma forma de estar na vida, mas na minha perspectiva não é correcta.Ajudou o Paulo Jorge Ferreira de Azambuja.Sim, está na Califórnia a tourear em grande.Mas acha que faz sentido que um cavaleiro tenha que ir para a América para fazer carreira?Não sei o que se passou com esta democracia portuguesa. Todos os miúdos que não tenham condições económicas têm dificuldades. O circuito está só para quem tem possibilidades económicas. Os toiros transformaram-se num negócio fechado. O grande falhanço económico do mundo ocidental tem a ver com a corrupção. O mundo dos toiros é corrupto ao mais alto nível. Tal como o futebol. No futebol sabemos o que se passa. Nos toiros ainda não, mas se calhar um dia saberemos. Quando falo em corrupção quero dizer que ninguém mexe um dedo sem ter dinheiro por trás. O tipo que abre a porta tem que ter dinheiro senão não abre a porta do toiro. Em relação a mim e a pessoas como o João Moura há respeito, mas há rapaziada de 20 e 30 anos que paga para tourear.É um contra-senso. Pagar para tourear. E como é que se movimenta neste mundo de corrupção?Tenho já muita ginástica. Sei como hei-de entrar e como sair. Falo com as pessoas certas na altura certa. E há muita gente com quem não devemos falar no mundo dos toiros.Manuel Jorge de Oliveira é apontado como um dos maiores cavaleiros de sempre em Portugal, mas tem andado um pouco fugido destas lides.Tem a ver com isto. Não tenho andado arredado 100 por cento, mas um pouco. É impossível negociar com parte destas pessoas que estão nos toiros. Não posso, ao fim de 40 anos de carreira, pagar para tourear. Nem devo, até por uma questão de exemplo. Mas hoje em dia nos toiros há muita gente que funciona assim. Em vez de fazer 40 corridas faço só dez ou doze. Tem recusado muitas?Não posso dizer isso, mas as pessoas que estão nos toiros conhecem-me e sabem que não vale a pena a abordagem para entrar em certos esquemas. Para se ser cavaleiro é mais importante dominar a técnica da equitação ou ser destemido em relação ao toiro?É essencial ser bom cavaleiro, saber tirar partido do cavalo e prepará-lo fisicamente para a prática do toureio. Há quem diga que ser toureiro demonstra a valentia. Penso que não. Conheço toureiros que não são muito valentes cá fora na vida. A relação homem-cavalo é sobretudo uma questão de inteligência. Não é para os valentes nem para os heróis.Iniciou um estilo que é reconhecido – a equitação de poesia. Considera que faz sentido falar de poesia quando a morte pode estar ali.Leiam-se os poemas de Garcia Lorca, vejam-se os quadros de Picasso… A morte é uma coisa extremamente poética. Para quem acredita na morte. Pessoalmente acredito que existe vida e que a morte faz parte da vida. O problema do homem é pensar que ele é a vida. É apenas parte. Quando se entra numa praça e se vê o toiro está a ver-se a morte em movimento. É a arte de enfrentar a morte em movimento. A morte é o toiro. A pessoa agarra uma relação com a morte que anula a própria morte. À medida que vai envelhecendo e toureando vai descobrindo que a morte nunca existiu. O que existe é a vida. Os filhos e os netos. A música, o público, o silêncio do público é poesia. A forma elegante como o cavalo se dirige ao toiro tem uma forma poética eloquente. E filosofa também na arena?Não temos tempo para filosofar ali. O que existe ali é qualquer coisa de transcendental. A pessoa não está num estado psíquico normal. De certa forma está transformada. Quando está 15 minutos com um toiro e tem que agradar ao público, controlar o cavalo e o toiro tem uma grande transformação e faz tudo por instinto. E depois quando metemos um bom ferro é extraordinário. É um momento de magia.Mas depois há um momento extremamente chato, de uma ressaca tremenda. Quem se vicia – eu nunca me viciei – no êxito e no sucesso precisa daquilo no outro dia. É como a droga. É preciso cuidado para não deixar de viver. Podem acontecer colapsos. A pessoa está sempre dependente desse momento mágico. E como contrariou isso?Corrida é corrida. Quando venho cá para fora esqueço. Gosto muito, mas não estou preocupado se vou ou não tourear este ano. Segue o espírito da equitação de mestre Nuno de Oliveira.Estive com ele nos últimos três anos da sua vida. Via-o montar e depois vinha para casa e praticava. É uma equitação ligeira. O cavalo faz todos os movimentos clássicos sem que o cavaleiro tenha grande interferência. O cavaleiro quase não se mexe. Mestre Nuno dava importância à apresentação do cavalo como a máxima figura dos dois e à anulação do cavaleiro. Para muitos cavaleiros é impensável praticar essa equitação frente ao toiro. Quer dizer que muitos não dominam bem a arte da equitação?Antigamente ninguém podia ir para dentro de uma praça de toiros se não dominasse certos requisitos. Nos últimos 25 anos foi ao contrário. Não havia ninguém que não quisesse ser cavaleiro e, tivesse ou não condições, ia para a praça de toiros. Neste momento está a dar-se novamente o volte-face. Que figuras vê como proeminentes no mundo da festa?Não gosto muito de falar em nomes, mas considero que a grande época do toureio a cavalo foram os anos 60 e 70. Apareceram meia dúzia de cavaleiros fantásticos. Dos anos 80 para cá houve uma fornada de cavaleiros que tiveram importância, mas penso que a qualidade decaiu muito. Vamos ver o que o futuro traz, mas vejo o toureio a cavalo de certa forma estagnado.Algumas mulheres tiveram relevância nos últimos anos.Isto foi toda a vida um mundo de homens. Foi muito difícil para as mulheres entrarem. No entanto penso que devem ter o cuidado de não deixarem de ser mulheres e dar um toque diferente à corrida de toiros. Não gosto de ver uma mulher usar casaca e tricórnio. A casaca assenta mal no corpo da mulher. Ficava mais bonita com um fato de jaqueta. Mas tem sido mais fácil para as cavaleiras que para as toureiras.O toureio a pé tem pouca viabilidade. As pessoas gostam do forcado e gostam do cavalo. Mesmo para os homens é difícil. Sem querer entrar no binómio – homens e mulheres – acho que cada um faz o que sabe e é importante ter categoria. Mas isto é extremamente duro fisicamente. Não são todas as mulheres que têm capacidade física para isto. Nem alguns homens.Cheguei a vê-lo numa reunião de Câmara do Cartaxo por causa da exploração da praça. Seria um projecto que lhe interessaria?Na altura pensei em meter-me nisso porque pensava que a democracia era uma coisa séria. Mas nesse dia percebi que não havia interesse em que ficasse com a praça de toiros. Se me perguntar porquê não sei. Não gosto de jogos. A minha vida são os cavalos. O que gostaria de mudar na praça?Os empresários têm que pensar em fazer espectáculos acessíveis à bolsa das pessoas. Depois é preciso começar a ser selectivo nos artistas. Não pode ir ao Cartaxo ou a Santarém toda a pessoa que quer ser toureiro. Há um trabalho de fundo a fazer. Os dinheiros de fora, o “não cultive” e o “pago-lhe para não trabalhar” levou a uma espécie de pessoas que se instalaram, mandam nisto e nunca fizeram nada. É preciso baixar os preços dos bilhetes e os toureiros têm que ser melhores para levar as pessoas à praça. A selecção natural vai começar outra vez.Um homem do mundo ruralFala cinco línguas, mas quem o vê no picadeiro da Quinta do Açude no Cartaxo – botas de trabalho e boné axadrezado - encontra um homem do mundo rural apaixonado pelos cavalos e pelo campo. Manuel Jorge de Oliveira completou 50 anos e já leva mais de trinta como cavaleiro tauromáquico. O trabalho da coudelaria e as aulas de equitação ocupam-no agora mais do que nunca.Recebe dois amigos franceses no picadeiro enquanto acaba uma aula. “Este cavalo está cinco estrelas”, comenta Manuel Jorge de Oliveira. “Os cavalos são como os homens. Há uns que crescem mais rápido que outros”, responde o irmão.Manuel Jorge de Oliveira é homem modesto, de carregado sotaque ribatejano, que reconhece as origens humildes e não esquece quem o ajudou. Na coudelaria – Sociedade Agrícola Oliveira Martins – tem mais de 50 cavalos. Uma referência no mundo do cavalo lusitano com muitos animais a tourear no mundo inteiro. A quinta é a sua vida, mas sempre que pode está com o filho de 11 anos e com a filha de 15. O pai, que faleceu há ano e meio, foi empregado de Ortigão Costa durante 48 anos. Foi lá que Manuel Jorge de Oliveira viveu até aos 20 anos. E lá se forjou cavaleiro tauromáquico. Depois da alternativa, em 1977 no Campo Pequeno, rumou ao Cartaxo. Estabeleceu-se na quinta que o pai comprou depois do 25 de Abril. Uma herdade com poesia nas paredes das casas que fica no limite da malha urbana do Cartaxo. Partilha da máxima de mestre Nuno de Oliveira de que se existe um talento deve ser partilhado. “Quando ensinamos sublimamos os conhecimentos e captamos novidades. As pessoas naturalmente têm a sua arte”. Em dezenas de cavaleiros tauromáquicos conheceu meia dúzia dotados naturalmente para essa actividade. “Às vezes nem os mais dotados são grandes aficcionados. Gostam de futebol e teatro, mas não vão às corridas”. Nasceu em Azambuja, mas reside no centro do Cartaxo. As viagens frequentes ao estrangeiro, em demonstrações de equitação, ou o trabalho com clientes árabes e franceses fazem com que se sinta um cidadão do mundo.O menino que queria ser cavaleiroManuel Jorge de Oliveira descobriu aos seis anos a sua paixãoMora no Cartaxo mas nasceu em Azambuja. Foi lá que ganhou a paixão pelos cavalos?Foi. Quando o meu pai trabalhava na casa Ortigão Costa a minha casa ficava paredes meias com a cocheira. Com dois e três anos já convivia com os cocheiros de Ortigão Costa. Acho que isto é uma coisa que nasce com a gente. Aos seis anos comecei a montar a cavalo. Costumava montar um burro. E quando eles se iam embora, sem ninguém saber, punha o arreio no burro e montava sozinho. Um dia o burro fugiu comigo. Saiu da quinta e veio parar à estrada nacional. Ia a chorar porque não conseguia conduzir o burro e foi uma senhora que ia a passar que o segurou.Estreou-se em Azambuja aos 10 anos numa vacada para angariar receitas para os bombeiros. Que recordações tem desse dia.Fui para lá sem ter toureado antes uma única vaca. Toureava um cão grande como este que cá tenho [o ‘Saddam’]. Largava-o num pátio e o cão corria atrás do cavalo para lhe morder as pernas. Passava a vida, esquerda – direita, a correr com o cão. (Risos). Na altura era difícil arranjar uma vaca para treinar. E não hesitou nesse dia?Não… Sempre soube muito bem aquilo que quis fazer. Sem hesitações. Fiz o sétimo ano do liceu com média de 16 valores. Estive para me matricular em veterinária, mas nesse dia parei e pensei: queres ser cavaleiro ou veterinário? Cheguei ao pé do meu pai, de Ortigão Costa e de um outro sócio, ambos veterinários, e disse: não me vou matricular. Ficaram admirados….Tirar um curso ia impossibilitar-lhe a carreira de cavaleiro?A minha vocação estava decidida. Sabia e sentia que poderia fazer qualquer coisa de positivo como cavaleiro tauromáquico e mais nada me seduzia. Ia tirar um curso para ser um infeliz?E fez todo o percurso escolar na Azambuja.Estudei em Azambuja até ao quinto ano, até 1974, ano da revolução. Depois fiz o sexto ano no liceu de Vila Franca de Xira. E o sétimo ano em Santarém. Porquê Vila Franca e depois Santarém?Foi numa época conturbada da revolução. Era presidente do Conselho [de Ministros] Vasco Gonçalves. Faziam-se greves todos os dias. Chegámos a estar dois meses em greve, mas tínhamos que ir ao liceu. Entretanto soube que em Santarém não havia tantas greves e fiz o sexto ano – era o matador Vítor Mendes meu colega em Vila Franca de Xira – e fui para Santarém.Em 1977, quando tirou a alternativa no Campo Pequeno, lidou toiros de Ortigão Costa. Teve algum simbolismo para si?Teve. Se o meu pai não tivesse trabalhado na Casa Ortigão Costa nunca teria conseguido ser cavaleiro. Ali tinha todas as condições, os cavalos e as infra-estruturas. Ortigão Costa é meu padrinho de baptismo. Estava a criar a coudelaria na altura e colocou três ou quatro cavalos à minha disposição. Ajudámo-nos um ao outro. Esperou ansiosamente pelo dia da alternativa?Sim. Tinha necessidade de ganhar dinheiro. A minha família tinha poucas posses e embora fosse ajudante de Ortigão Costa achava que não deveria ser dependente. A empresa do Campo Pequeno tinha um homem extraordinário chamado Américo Pena que me propôs que tirasse a alternativa na corrida da associação de comandos. Ia o Ramalho Eanes como Presidente da República. Havia uma certa predisposição política e social. A esse homem devo a projecção da minha carreira. Assim como a Celestino Graça, que presidia à empresa de Santarém, que me ajudou bastante quando era amador. O grande impulsionador da Feira da Agricultura. Talvez o homem mais importante do Ribatejo dos últimos 100 anos. Nessa noite de Junho de 1977 vestiu uma casaca azul e oiro.Azul marinho… Essa casaca custou sete contos e quinhentos. Como pagou?Ele ficou à espera que recebesse da corrida. Foi a primeira corrida em que recebi. Na altura da alternativa já andava com uma camioneta minha. A carroçaria para os cavalos foi um tio meu que a fez à noite comigo. O camião custou 15 contos. Com mais 35 fizemos o resto.
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