Um autarca viciado na política mas sem paciência para politiquices
Carlos Marçal lidera União de Freguesias da Cidade de Santarém que tem cerca de 30 mil habitantes
É beirão de nascimento mas diz que já na infância sentia um certo fascínio por Santarém. As voltas do destino fizeram com que aí se fixasse, em 1977, e hoje já considera a cidade como sua. Carlos Marçal é um homem que gosta de honrar a palavra dada, que se irrita com os políticos que não cumprem as promessas e que gastam mais do que aquilo que têm. Elogia os novos moldes das Festas de São José, que estão a decorrer na cidade, e lamenta que ninguém tenha parado Moita Flores a tempo de evitar o descalabro financeiro em que deixou a Câmara de Santarém.
É oriundo da Beira Baixa mas fez a maior parte da sua vida em Santarém. Gosta de viver nessa cidade?Adoro viver nesta cidade. Quando regressei de África tinha vários destinos à escolha mas preferi Santarém para viver. Quando era novo ouvia falar de Santarém, das Portas do Sol, e isso para mim tornava a cidade diferente. Ficou-me sempre no ouvido. Como ficava a meio caminho entre Lisboa e a minha terra optei por Santarém, em 1977. Aqui nasceram e foram criados os meus filhos e aqui estou há 37 anos.O que mais o cativa em Santarém?A centralidade. Santarém está perto de Lisboa, está perto da praia e tem boas acessibilidades.Revê-se nas tradições ribatejanas? É aficionado?Não sou aficionado nem é por causa disso que cá estou. Revejo-me nas tradições ribatejanas, com excepção das touradas. Não conheço as regras daquilo e poucas vezes assisti a uma.Nem às que o ex-presidente da câmara Moita Flores ajudou a promover?Nunca fui. Nem concordava com a oferta de bilhetes às juntas de freguesia para estas distribuírem. Para as juntas até era mau, pois ficavam com a fama de darem os bilhetes aos amigos, mesmo que não fosse assim. Santarém hoje está melhor do que estava quando chegou há 37 anos?Está muito melhor! O que mais me custou quando cá cheguei era não ver ninguém na rua à noite. Era ao contrário de Moçambique.Esse panorama hoje não é muito diferente, pelo menos na zona mais antiga da cidade.Exacto. Mas noutros tempos cheguei a ir a Almeirim para comprar um maço de tabaco, porque não havia nenhum café aberto em Santarém a partir das dez horas da noite. Isso fazia-me confusão. Foi das coisas a que mais me custou adaptar em Santarém. A esse nível as coisas melhoraram muito. Há cafés e bares abertos até mais tarde.Uma situação que até tem motivado algumas queixas, devido ao ruído nocturno. É difícil conciliar a diversão com o descanso dos moradores.É uma complicação muito grande, na medida em que os que fazem a vida nocturna têm todos os direitos e quem trabalha não. Recordo um episódio caricato e exemplar. Um vizinho meu teve uma ruptura na canalização da casa numa sexta-feira e no sábado de manhã arranjou um pedreiro amigo para lá ir partir o chão e descobrir onde estava a fuga. Um vizinho, que tinha andado na noite, telefonou para a PSP a queixar-se do ruído. A polícia foi lá e obrigou o pedreiro a parar com o trabalho e ainda lhe aplicou uma multa. Como é que se consegue arranjar um ponto de equilíbrio nessa questão, tendo em conta que os jovens, e não só, também necessitam de espaços de diversão nocturna na cidade?Quem tem um bar aberto até às três ou quatro da madrugada deve ter cuidados especiais em relação aos vizinhos. Tem que saber que precisa dos vizinhos para fazer o negócio e para os clientes fazerem a noite como querem. Mas há quem se esqueça que há pessoas a residir nas proximidades que precisam de descansar porque no dia seguinte têm de se levantar cedo para ir trabalhar. Os donos dos bares têm que cativar os vizinhos e não comprar brigas. Há alguns que entendem isso, há outros que não.Candidatura a património mundial “não tinha pés nem cabeça”Apesar das boas vias de comunicação, da proximidade a Lisboa e da centralidade face ao mapa do país, o concelho de Santarém não tem conseguido ganhar população. A que se deve isso?É uma situação difícil de explicar. Antigamente dizia-se que Santarém não progredia por causa dos latifundiários que não queriam cá indústria, porque depois lhes ficava a mão de obra mais cara. E a indústria foi toda para Leiria. A única coisa que se instalou aqui foi a fábrica de cerveja Clok e uma serração ou outra. Hoje os latifundiários acabaram e continua a não haver esse desenvolvimento. Pode ser devido à proximidade a Lisboa. Porque há muita gente que vai a Lisboa de propósito para cortar o cabelo ou comprar um fato.O facto de não haver uma zona industrial estruturada também deve ter o seu peso?Tem, pois não se criaram condições propícias à instalação de empresas. Veja-se o exemplo de Castelo Branco, onde o desenvolvimento da cidade nas últimas décadas se deveu muito à instalação de unidades industriais.Assenta bem a Santarém o título de capital do Ribatejo?Acho que sim. Já quanto ao título de capital do gótico tenho dúvidas, pois há muito gótico em Portugal. Também não fui muito apologista da candidatura de Santarém a património mundial. Não foi um processo bem pensado nem bem estruturado. Não tinha pés nem cabeça e penso que foi por causa disso que não foi aprovado. Foi uma situação que fragilizou a cidade.Moita Flores, enquanto presidente da câmara, disse que queria reforçar o estatuto de Santarém no contexto regional e nacional. Na sua opinião conseguiu-o?Inicialmente penso que sim. Só se falava de Santarém quando caíam as barreiras ou quando havia cheias ou touradas. Nos primeiros três ou quatro anos, Santarém ganhou projecção em relação ao distrito. Antes, verificava-se que a centralidade regional estava a fugir para Tomar, Abrantes e Torres Novas. A partir de determinada altura começou-se a falar de Santarém e a falar-se de outra maneira. Depois as coisas evoluíram de outra maneira...Hoje há muita gente desiludida com Moita Flores, mesmo entre aqueles que lhe foram próximos. Inclui-se nesse grupo?Sim. Fiquei desiludido com a forma como deixou as finanças da autarquia. Houve opções que se tomaram que deviam ter sido melhor pensadas. Nós hoje não conseguimos fazer nada devido à situação em que estamos. Fez-se muita obra, mas alguma é questionável. Não se parou a tempo. Foi como as auto-estradas em Portugal, ninguém as parou. Hoje estamos a viver afogados em dívidas e depois dizemos que perdemos a nossa soberania por causa da troika. Não foi por causa da troika, faltou foi pagar o que devíamos.O renovado modelo das festas de São José, que se encontram a decorrer, foi criado por Moita Flores. Foi uma das boas heranças que deixou?Acho que sim. Lembro-me que o 19 de Março era comemorado apenas com umas iniciativas na quinta de São José. As coisas mudaram muito, mas também não se deve ir logo do 8 para o 80. Agora está-se a tentar fazer festa, mas equilibrada em termos de receitas, sem prejuízo para a câmara. Temos que viver à nossa medida. “Na política brinca-se muitas vezes com coisas sérias”A agregação de freguesias vem resolver alguma coisa?Fui sempre um bocado avesso a essa reforma. Se era para se fazer com o intuito de economizar, então tínhamos de começar pelos municípios. Mas começar pelos municípios era brigar com os barões dos partidos. Não houve coragem para isso e eu lamento. O meu partido (PSD) devia ter tido a coragem política para o fazer. As pessoas não perceberam por que razão essa reforma começou pelas freguesias, porque tinham estas de se agregar. Mas o princípio até é bom, de maximizar e rentabilizar os recursos, desde que não se puxe mais por umas freguesias em detrimento de outras. O que ganharam os cidadãos com a criação da União das Freguesias da Cidade de Santarém?Os nossos cidadãos não perderam com a agregação das quatro freguesias, antes ganharam. Porque antes tinham um ponto de contacto onde podiam resolver os seus problemas e agora ficam com quatro. Não precisam de ir à sede. Por outro lado, há uma centralização das receitas que se vai traduzir numa melhoria da actuação da junta de freguesia. As freguesias ganharam recentemente novas competências, como a da recolha de lixo e limpeza de espaços verdes, mas poucas são as que as assumiram.Isso é impraticável e não concordo. É uma medida anti-económica. Recuso-me a aceitar a responsabilidade da recolha dos resíduos sólidos. Senão era como se fôssemos outra câmara.Aos 70 anos voltou a candidatar-se a presidente da junta e agora de um território que engloba quatro freguesias e mais de 30 mil habitantes. Ainda não se fartou da política?É uma coisa que faço por gosto. Já dei provas de que não estou ali por dinheiro. Estou lá porque gosto de estar ocupado e porque gosto de fazer alguma coisa pela minha terra. Gosto tanto de Santarém como da minha terra. Quando me perguntam onde estou melhor, se estou aqui digo que quero ir para lá, se estou lá digo que quero vir para aqui. A política é um vício? Gosto de política, mas não de alguma política que se pratica por aí.Quando presencia algumas discussões, como as que por vezes se assistem na assembleia municipal, apetece-lhe levantar-se e sair?Sim, muitas vezes. Há chicana política a mais. Brinca-se com coisas sérias. Toda a gente que me conhece sabe que sou brincalhão, mas quando são coisas sérias ninguém me vê a brincar. Em Santarém, quando se quer fazer barulho, fala-se do centro histórico. Toda a gente fala do centro histórico sem saber o que está a dizer. A recuperação do centro histórico passa por uma intervenção de fundo. E aqui nunca se fez nada integrado. Todos os partidos têm de estar do mesmo lado. Podemos recuperar o centro histórico todo, mas se não houver estacionamento, se não houver gás canalizado ou bom acesso à Internet, por exemplo, não se consegue atrair moradores. Tivemos de começar esta entrevista um pouco para lá da hora marcada porque estava a acompanhar técnicos que estavam a reparar uns semáforos. Um presidente de junta é uma espécie de bombeiro?Na verdadeira acepção da palavra e até já ajudei a apagar fogos.Os fregueses costumam bater-lhe à porta?Não. É mais por telefone. Estão a ligar-me a toda a hora. Às vezes vou com a minha mulher na rua e fico preso na conversa. Depois tenho de ir eu a correr atrás dela. Não sou capaz de dizer que não a ninguém. O pior é se depois os problemas não se resolvem...Quando não tenho a certeza que não sou capaz de fazer, não prometo.Não gosta dos políticos que fazem promessas que depois não cumprem?Não. Fico irritado. Ficou chateado por o actual primeiro-ministro Passos Coelho não ter cumprido a promessa de que não iria aumentar os impostos?Então não fiquei! Barafustei, porque as pessoas mentem e eu não gosto. Não brinco com coisas sérias, por isso, quer seja o meu partido quer não seja, não pactuo com essas atitudes. A política deve ser feita de outra forma, por todos os quadrantes. Não é criticar por criticar, mas sim puxarem todos para o mesmo lado. Porque hoje estamos nós no poder e amanhã estão outros. Quando estive na oposição na Assembleia de Freguesia de Marvila sempre tive essa postura.Beirão de berço e escalabitano de adopçãoO sotaque denuncia as origens beirãs. Carlos Marçal nasceu no dia 23 de Setembro de 1943 na freguesia de Várzea dos Cavaleiros, no concelho da Sertã, mas já se considera um escalabitano de adopção. Escolheu a cidade ribatejana para viver em 1977, após ter regressado de Moçambique na sequência da independência dessa ex-colónia portuguesa. Aposentado da função pública, foi durante 26 anos responsável da contabilidade na Administração Regional de Saúde de Santarém.Casado, pai de dois filhos, está ligado à actividade autárquica desde 1985, começando como presidente da Assembleia de Freguesia de Marvila, cargo que desempenhou durante dois mandatos. Foi membro da oposição nessa autarquia durante dois mandatos e ainda tesoureiro e depois presidente da Junta de Freguesia de Marvila durante dois mandatos, antes da fusão das freguesias da cidade. Sempre eleito pelo PSD. Foi também membro do conselho geral da ANAFRE (Associação Nacional de Freguesias) durante 10 anos. Com a junção das freguesias de Marvila, São Nicolau, São Salvador e Santa Iria da Ribeiranasceu a União de Freguesias da Cidade de Santarém, com cerca de 26 mil eleitores e mais de 30 mil habitantes. Carlos Marçal fica para a história como o primeiro presidente de uma união de freguesias que tem mais população do que a esmagadora maioria dos concelhos do distrito de Santarém e que é, na área de abrangência de O MIRANTE, a terceira mais populosa, atrás das de Póvoa de Santa Iria e de Alverca, do concelho de Vila Franca de Xira, já na Área Metropolitana de Lisboa.
Mais Notícias
A carregar...