Fontes - Um lugar para os três mundos
A fotografia mostra um lugar para os três mundos - animal, vegetal e mineral. O céu por cima tem nuvens carregadas que sugerem chuvas de pingos grossos, capazes de colar à terra o pó deixado pelo vento. Chamam objectiva à lente da máquina mas o que eu sinto é uma subjectiva melancolia, uma tristeza sem referências, uma sombra que se instala no preto e branco da memória. Porque é de uma memória que se trata, quando esta fotografia me surgiu no café. Nessa memória, cabem todas as casas, todas as vozes, todos os tempos de quem viveu nestes lugares submersos e deles partiu sem olhar para trás. No seu olhar havia rancor, havia espanto, havia revolta. O seu mundo acabou demasiado depressa, sepultando em filmes a preto e branco a memória dos homens que empurravam pinheiros até ao Rio Zêzere com juntas de bois e, mais tarde, recolhidos na Praia do Ribatejo por outros homens com longos garfos de ferro. A massa líquida forma no centro da fotografia um «v» talvez de vencido a lembrar tudo o que se perdeu nas pequenas aldeias submersas em 1950. À esquerda temos as casas, o fumo das chaminés, a vida que se pressente no Souto e na Bairrada. Ao centro as Fontes a preto e branco tal como a vida que, todos os sabemos, não é a cores. À direita notam-se as casas da Portela e da Cabeça Ruiva, seus rituais e sua azáfama de todos os dias. Mais à direita ainda fica a Ilha do Lombo, antiga montanha que a força da água mudou na sua inesperada geografia. Era um monte; chama-se ilha. Às vezes passam barcos velozes na sua espuma breve e são como vírgulas inesperadas que uma borracha vai apagando para voltar a calmaria. Do lado de lá da massa líquida do Castelo de Bode fica a Serra de Tomar: chegam aqui foguetes e músicas de festa uma vez por ano nos festejos da padroeira. Os que foram obrigados a sair à pressa das suas casas, do fogo da lareira, do calor das mantas no Inverno, das memórias pessoais de cada vida humana, esses nunca tiveram padroeira e hoje nem os nomes das localidades submersas se recordam nas publicações para os turistas. Na Casa do Barroquinho, Tomás, Lucas e Pedro nada sabem do passado. Os três somam 16 anos de idade e olham para a massa líquida da varanda da casa dos avós do mais pequeno. O carro do pão apitou às 9 e 30 com a pontualidade dos relógios. Lá dentro há pão de fôrma, bolos, broa de milho, carcaças, a abundância que os avós perseguiram em anos de sacrifício. A Albufeira faz 65 anos, eles somam 16 anos nas suas três idades mas a fotografia continua a sugerir o rancor, o espanto e a revolta de quem, no princípio de tudo, partiu para longe e não olhou para trás. José do Carmo Francisco
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