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“Viriato” é um personagem do livro de João Aguiar

“Viriato” é um personagem do livro de João Aguiar

O “Viriato” que o Fatias de Cá conta aos sábados, pelas 19h19, junto ao Castelo de Almourol, com banquete de casamento incluído por 22,22 euros (reservas@fatiasdeca.net) foi adaptado para teatro por Carlos Carvalheiro e Filomena Oliveira, do livro de João Aguiar “A Voz dos Deuses”. É da autoria do escritor o texto que se segue.

A adaptação cinematográfica ou teatral de uma obra é sempre uma operação delicada. E o autor da obra em questão tende a sentir uma certa angústia ao ver-se confrontado com os resultados, sobretudo quando não participou directamente no trabalho de dramatização.Pela parte que me toca, estava preparado para sofrer essa angústia serenamente e em silêncio, caso ela se manifestasse, porque a isso me obrigaria a decisão, livremente tomada de confiar em quem se propunha adaptar à cena o meu romance “A Voz dos Deuses”.A verdade, porém, é que não me sentia grandemente inquieto a esse respeito. Sobretudo após ter assistido, no Convento de Cristo, em Tomar, à representação da peça “T de Lempicka”, de John Krisank, produzida pelo Fatias de Cá. Pensei, então, que aquilo que vira me dava todas as informações de que necessitava sobre este grupo, cuja existência ignorara até então (por ser uma das muitas vítimas da macrocefalia e do “desequilíbrio litoral” que desde há tanto tempo afligem o nosso País, tanto na economia como na cultura).Nessa produção de “T de Lempicka” reconheci uma qualidade, uma criatividade, uma sensibilidade estética e uma noção de ritmo que não eram vulgares no que conheço da cena portuguesa.Portanto, após ter assistido à representação e de ter dado o meu acordo à iniciativa de adaptar “A Voz dos Deuses”, fiz aquilo que, estou certo, se esperava de mim, aquilo que um autor deve fazer nesta circunstância: deixei o grupo trabalhar em paz, sem interferências, e limitei-me a manter-me disponível quando e se fosse necessário.Pensei - e penso - que essa era a única atitude lógica e legítima. O trabalho de adaptação, de dramatização de um romance é, na sua essência, tão criativo quanto o da escrita do próprio romance e aquilo de que não se precisa é de interferências constantes, mesmo que partam do autor da obra. Por outras e mais chãs palavras: se o autor não é ele próprio um homem de teatro e não está, à partida, directamente envolvido no trabalho, o seu papel mais importante é o de não ser um chato.O resultado final confirma plenamente esta minha opinião. O “Viriato” que o Fatias de Cá levou à cena não trai em momento algum o espírito ou a intenção de “A Voz dos Deuses”. Nem mesmo quando se afasta da linha narrativa ou quando diverge em personagens e pormenores. Essas alterações são inevitáveis em toda e qualquer adaptação, pois que se trata de traduzir um livro para uma linguagem diferente - cénica, visual, dramática.Como se sabe, abundam, neste domínio, as possibilidades de desastre: o “enriquecimento” que é um puro desvio e torna irreconhecível a obra original, o abastardamente praticado em nome do “gosto do público” (leia-se imperativos comerciais, geralmente de mau gosto) as opções que, mantendo embora a forma geral, traem o conteúdo.Estes são os desastres possíveis que, no caso presente, não ocorreram. Em vez deles, depara-se com um trabalho de dramatização seguro, feito com inteligência e com sensibilidade, em que se nota uma clara compreensão do romance e em que os autores conseguem, através das próprias alterações introduzidas, salvaguardar ou mesmo realçar ideias importantes que poderiam facilmente perder-se numa adaptação menos cuidada.Darei apenas como exemplo a figura de Tangina, a noiva de Viriato, uma personagem apagada, quase inexistente no livro e que surge aqui com uma força, uma importância, uma intenção muito especiais, o que permite abordar, com densidade e eficácia, certos aspectos políticos, militares (e logísticos) da acção de Viriato como chefe das hostes lusitanas em luta contra a República Romana.Por outro lado, o texto - narrativa e diálogos - é um belo tecido de “velho” e “novo”, ou seja, combina com fluidez o material original e os elementos construídos, necessários, sobretudo, no diálogo. É um trabalho difícil, feito de equilíbrio, de contenção. E plenamente conseguido.Finalmente uma brevíssima palavra sobre aquilo a que chamarei o “movimento cénico” (quase se pode falar de coreografia). Escolho, como exemplo ilustrativo, a cena do casamento de Viriato e direi somente o seguinte: os ritos lusitanos do matrimónio não eram certamente os que vemos, pelo que esta cena não será historicamente exacta. Mas uma representação teatral não é (nem pretende ser) um tratado ou um ensaio histórico. E se os lusitanos não se casavam como Viriato e Tangina se casam aqui - é pena.
“Viriato” é um personagem do livro de João Aguiar

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