Tudo começava com um som seco
Memórias da Ascensão
Estávamos na escola primária a aprender com o saudoso professor Filipe a alinhar as primeiras letras e a somar os primeiros números, quando o bater de um martelo em estacas de ferro nos desviava a atenção. A feira chegava à Chamusca e com ela um exército de barulhentos e divertidos feirantes, as farturas, os carrosséis, os carrinhos de choque e o circo.
O circo, a magia do circo! O gigante de Moçambique, “O Homem mais alto do Mundo”, e o outro, claro, o mais pequeno do mundo, as elegantes trapezistas e os palhaços com as suas piadas possíveis…
Lembro-me de o meu pai me ter dado um dinheirito para comprar qualquer coisa na feira. Decidi-me por um porta-moedas, só que o dinheirito que tinha era à conta, ou seja, ficava com o porta-moedas, mas sem moedas para pôr lá dentro…
Era a festa da Ascensão, a festa da Espiga.
E quando chegava esse dia tão esperado, a quinta-feira de Ascensão, não sei se era exactamente ao meio-dia como manda a tradição, a hora em que “as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não levada e as folhas se cruzam”, grupos de homens, mulheres e crianças saíam para os campos floridos para fazerem piqueniques e enlaçar os ramos que teriam de durar, pendurados atrás das portas, até ao ano seguinte.
Talvez não conseguíssemos colher todas as plantas que compõem o ramalhete: a espiga que prometia o pão, o malmequer a fortuna, a papoila o amor, a oliveira a luz, o alecrim a saúde e a videira a alegria…mas aquele dia ficava sempre guardado dentro de nós, nem que fosse pelo primeiro beijinho que colhíamos da namorada ou, à falta de beijo, um simples mas maroto olhar.
Esta é uma pequena memória, de um grande dia que é a quinta-feira da Ascensão na Chamusca.