Ele conheceu os piores criminosos de Vale de Judeus
Real Soares foi guarda prisional durante 30 anos. Testemunhou uma grande fuga, privou com homicidas e tentou controlar traficantes de droga. Vive perto da cadeia, mas não quer abandonar Alcoentre. “Esta já é a minha casa”, confessou a O MIRANTE.
Quando entra no Café Ponderosa, em Alcoentre, todos lhe conhecem o nome: “sr. Real, quer um fino?”. Ele quer. Foi guarda nas cadeias de Vale de Judeus e Alcoentre e lidou com personalidades complexas e violentas, mas nunca disparou um tiro em serviço nem perdeu o sorriso gentil. É da Beira Alta, rumou a Angola ainda menino e chegou a Alcoentre com 30 anos, dois filhos e uma mulher de cor mais escura, que nunca foi discriminada na terra que tão bem o recebeu.
Está reformado há dez anos, mas Tina, a esposa, ainda trabalha no refeitório daquele que já foi considerado o estabelecimento prisional mais seguro do país. Mas não é (só) por isso que não quer abandonar a localidade do concelho da Azambuja. “Esta já é a minha casa”, confessa, aos 68 anos. Gosta do Ribatejo, apesar de não apreciar touradas, mas gosta da calma e da amizade, da forma como foi recebido. Foi nessa terra que os seus dois filhos cresceram - o mais velho, já falecido, chegou a prestar provas para concorrer ao cargo de guarda prisional. O mais novo não quis nada com a prisão e ainda vive em casa dos pais. “É um verdadeiro solteirão”, conta, a rir. Quem diria que este homem afável foi capaz de lidar com os mais terríveis chefes de quadrilhas?
Real é nome próprio, porque o pai tinha uma mania especial de dar nomes diferentes aos filhos. Foi depois da descolonização de África que regressou a Portugal com um filho pela mão e outro no ventre da mulher. “Tempos difíceis”, que não gosta muito de recordar. Alguém lhe falou que procuravam guardas prisionais: ia abrir um concurso. Real Soares submeteu-se aos testes, que incluíam provas de cultura geral, mas também testes físicos e de resistência. Conseguiu passar em todos. Aos 30 anos, começava uma nova vida. E ele, que não tinha cometido crime algum, passou as seguintes três décadas atrás das grades. Por opção.
A maior fuga da Europa foi em Alcoentre
Estava apenas há dois meses no Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus quando se deu aquela que é até hoje considerada a maior fuga de uma cadeia na Europa. Durante anos, tinha sido considerado o presídio de máxima segurança em Portugal, mas, numa noite de 1978, 124 presos fugiram, depois de terem escavado um túnel de 35 metros. Nesse dia, restavam na prisão apenas 89 reclusos. “A maior parte deles não fugiu porque não quis. Estavam em fim de pena ou não tinham para onde ir”, recorda o guarda-prisional.
A fuga foi um embaraço para os Serviços Prisionais e fonte de “frustração” para Real Soares, que tinha uma experiência ainda muito curta de serviço. Mais tarde, chegaria a chefe dos guardas prisionais. Anos volvidos, aponta factores que ajudaram à fuga: “Os reclusos andavam livremente pela cadeia desde as oito da manhã até à hora do fecho de emissão da televisão”. Aliás, dias antes da fuga, passou o filme “A Grande Evasão”, que conta precisamente a história de um grupo de prisioneiros que foge de um campo de concentração nazi depois de terem escavado um túnel. Foi uma coincidência, mas nenhum guarda estranhou sequer as gargalhadas altas dos presos. A fuga já tinha sido planeada.
“Na noite em que fugiram, percebemos que estávamos a fechar muito poucos reclusos. Pensámos que se tinham barricado em algum lugar, para depois nos atacarem”. Só de manhã é que os guardas se aperceberam da debandada de mais de uma centena de reclusos. A incredulidade tomou conta do país. Após a fuga, a cadeia acabaria por ser encerrada, para sofrer obras de remodelação, e Real Soares foi prestar serviço para a cadeia de Alcoentre. No entanto, regressou a Vale de Judeus, onde terminaria a carreira.
“Verbalmente eu podia ser bastante duro, mas não gostava de complicar”
Agora que se reformou, passa os dias em casa - num dos bairros que pertencem aos Serviços Prisionais - a ler livros de História ou a jogar ao dominó e às cartas numa das associações da terra. Gosta da muamba - prato típico angolano - confeccionada pela mulher, mas não dispensa o bom vinho ribatejano. Entre um copo e outro, às vezes é capaz de contar uma história, ou de expor, calmamente, uma teoria. “O grande crime está ligado à extrema direita, porque tem de existir capital para que exista algo para roubar”, diz Real Soares. Ou ainda: “O criminoso é um indivíduo patologicamente egocêntrico”.
É verdade que lidou com os reclusos mais perigosos, mas gosta de recordar os “bons rapazes”: muitos deles criminosos condenados a penas pesadas, mas que as cumpriam sem tiques de submissão. “Ainda tinham vida dentro deles e refilavam...”. Mas Real Soares não era o guarda “bacano”: “Verbalmente eu podia ser bastante duro, mas não gostava de complicar. Havia quem gostasse de o fazer”.
Por isso, aconteciam os motins... “Há muita tensão dentro das cadeias. Lembro-me que existia um chefe que obrigava os reclusos a andarem com o colarinho apertado mesmo em dias de muito calor, quando isso nem sequer estava no regulamento”. Há quem goste de mandar... e quem goste de ganhar mesmo quando é suposto estar do lado certo. “Corrupção havia. Comigo nunca tentaram, que eu me tivesse apercebido”. Não aponta nomes, mas recorda consequências. “Conseguimos que um guarda corrupto fosse transferido e ele acabou por ser morto, numa outra cadeia”.
Em três décadas, conheceu a “pior geração de bandidos”, ali a meio dos anos 80, mas também a passagem para outra realidade - a do tráfico de drogas. “Conheci homicidas, mas estes geralmente cumprem as regras da prisão. Os traficantes são um conflito em si mesmos”.
Sobrelotação das cadeias impede reabilitação
“Quem ainda lá trabalha diz que está tudo pior, mas desde que construíram a cadeia de Monsanto, para onde vão os casos mais complicados, as coisas mudaram para melhor”. E aquilo que o povo diz é verdade: “É difícil não se sair um criminoso pior depois da passagem pela prisão, é difícil separar os primários dos reincidentes, ainda mais agora com a sobrelotação das cadeias”.
A violência sempre existiu, assim como a violação dos novos que chegavam: “Não havia muito que pudéssemos fazer. A não ser que eles se queixassem e, claro, eles não se queixavam, com medo de represálias”. Os dramas e os terríveis episódios da vida dentro da cadeia, Real Soares sempre deixou do lado de fora de casa. “Não eram coisas que eu gostasse de contar à mesa de família”. Contou-as num livro que chamou “30 anos de vida nas prisões e outras estórias”, uma edição de autor, que ofereceu aos amigos.
Fugitivos foram beber café e regressaram à cadeia
Dos 124 reclusos que escaparam pelo túnel, a grande maioria foi capturada nos dias que se seguiram à fuga. “As pessoas de Alcoentre garantem que alguns deles até foram tomar café e regressaram, pelo túnel, à prisão”. Um dos locais por onde um dos fugitivos terá passado foi precisamente o Café Ponderosa, ao km 57, na EN1. “Só os cabecilhas da fuga é que tinham tudo planeado e meios para desaparecerem, uma vez cá fora. Alguns, ainda hoje, não se sabe para onde foram nem o que lhes aconteceu”, conta Real Soares.