A arte de ser marialva
Rodrigo Rodrigues Pereira canta o fado, não consegue viver sem cavalos e toiros e os seus olhos azuis já o levaram ao terceiro casamento. “Tenho a minha parte católica e a minha parte pagã”. É feliz no campo e a cantar músicas dedicadas à mulher ribatejana. E, claro, é encantador.
“Fui certa vez ao Ribatejo entusiasmado; À mais castiça das festas tradicionais; Que grande dia, que dia tão bem passado, um desses dias que a gente não esquece mais. Vi curiosos tourearem com destreza, numa espera de toiros ao romper de alva, e assistindo a uma corrida à portuguesa, toda a beleza do toureio marialva (...)”.
Foi com este fado que Rodrigo Rodrigues Pereira, 61 anos, apaixonado por cavalos e toiros, fadista com álbuns gravados e defensor da máxima “o amor é que nos salva” - três casamentos, quatro filhos, um olhar azul que enfeitiça, - encerrou a entrevista com O MIRANTE. Foi, na verdade, “uma conversa”, como ele mesmo definiu, e decorreu na quinta de um dos amigos do peito, a Quinta da Silveira, na Fajarda (Coruche), refúgio de boémios que aos dias de semana são empresários e soltam o melhor do Ribatejo nos dias livres, em campo aberto. Quem foi que disse que já não existem marialvas?
Aos fins-de-semana, no “convívio”, Rodrigo Rodrigues Pereira não usa o traje curto, a farda tradicional do marialva. Enverga-a, com orgulho e vaidade, em espectáculos mais específicos. Não a usou quando o Grupo Fado Marialva, ao qual pertence, actuou no Casino Estoril, na semana passada. Mas colocou o seu chapéu e exibiu a melhor postura esta terça-feira na Feira da Golegã.
Nascido e criado em Vila Franca de Xira, cresceu no meio de touros e cavalos, foi forcado uma década - “a juventude pede adrenalina” -, fez-se aficionado com uma paixão tão intensa como a dos pais e a dos irmãos, mas cresceu a ouvir fado e ópera: “Lá em casa havia pianos, íamos ao S. Carlos. O meu pai era contabilista e era um homem muito interessante. Um boémio, com uma grande ligação à cultura”.
Ao falar do pai, Manuel Júlio (“deixou saudades em VFX”), os olhos turvam-se num azul que, ainda assim, não perde a malandrice. Rodrigo consegue falar sério. É tudo a sério, feito com brio e “transparência” - a sua palavra preferida, talvez por isso não goste nem nunca tenha tido ligações à política: “Não, nada disso, o que eu gosto é de estar aqui no campo com os meus amigos, beber um bom vinho, comer este queijinho e conversar consigo”, revela, sorriso treinado, mas honesto.
“As mulheres do Ribatejo são as únicas que aturam os ribatejanos”
Assume-se marialva, mas explica: “Essa é uma palavra que vem do Marquês de Marialva que era um homem ligado à arte equestre. Entre os séculos XVIII e XX era um termo depreciativo, era o que batia na mulher, andava sempre nas meninas da vida”. E continua: “Os marialvas de hoje fazem esta vida: gostamos de estar no campo, treinar os cabrestos do amigo Paulo [o dono da quinta] petiscar, beber vinho, cantar”. E as mulheres, Rodrigo? “Se os marialvas mais antigos eram mulherengos, não lhes tiro mérito nenhum”, ri-se, ele que parece ter assentado à terceira mulher, a única que é ribatejana “até à medula”, nascida também em VFX.
Admite que teve os seus namoros e chegou à conclusão de que “quanto mais se escolhe, menos se acerta”. E responde sem hesitar àquilo que diferencia as mulheres do Ribatejo das restantes. “As mulheres do Ribatejo são as únicas que aturam os ribatejanos”. Porquê? “Já estão habituadas, já os conhecem”, responde e ouve-se gargalhada geral.
Das três uniões - “sou amigo das minhas duas ex-mulheres” - teve quatro filhos: a Rita, o Ricardo, a Margarida e o Diogo. Uma prole de três mulheres diferentes, experiências - e idade - que lhe dão o direito de defender teorias: “Para um casal dar certo é importante que tenham planos em conjunto”. Os amigos, como o Carlos Martins, de Arraiolos - “mas sou o alentejano mais ribatejano que há” - e Paulo Pinto, o dono da quinta, riem. Pedem-lhe um fado, “aquele fado” - e Rodrigo lança o vozeirão aos primeiros versos do fado “Mulher Arado”. Os homens ouvem em silêncio, já o ouviram dezenas de vezes, mas ficam sempre emocionados. “É dedicado à mulher ribatejana, tem uma letra simples mas encerra uma grande carga poética. Diz tudo”, sublinha o marialva.
Não vive sem o fado. “Tinha oito ou nove anos quando cantei pela primeira vez em público, num barco a caminho de Salvaterra de Magos”, recorda. Engenheiro agrícola na Companhia das Lezírias - tem casa em Vila Franca de Xira, mas vive actualmente numa habitação da empresa -, diz-se “um [fadista] semi-profissional. Não preciso de cantar para viver”. Não consegue é viver sem cantar. E, apesar de ter sido criado num ambiente católico, vive no limbo: “Tenho a minha parte católica e a minha parte pagã”. Por isso, o medo, não da morte, mas “da angústia. De saber que existe um fim, o medo do vazio, do nada”, confessa. E que nos salva? “É o amor. Os pequenos pormenores. Este bocadinho de conversa. O amor são as coisas simples, sabia?” Ah, marialva.
O sucesso improvável do Grupo Fado Marialva
Nasceu em Setembro de 2005, na mesma altura do lançamento do primeiro disco, intitulado “Fado Marialva”. Da primeira formação faziam parte Carlos Pegado e Manuel da Câmara, o que se lembrou de gravar um CD: “Eu nem sabia que um cantava, nem que o outro tocava”, ri-se, ao lembrar. O primeiro álbum foi dedicado a João Villaverde, um dos grandes impulsionadores e motivadores da criação do grupo. Rodrigo Rodrigues Pereira escreveu duas letras para esse disco, mas confessa que escreve “muito pouco”, ao contrário do irmão, Francisco Rodrigues Pereira, que lançou recentemente o livro “O Negresco”.
O segundo disco, “Campo e Tradições”, é gravado já com a segunda e actual formação: sai Carlos Pegado e entra Francisco Martins. Não têm agente nem se promovem, mas o ano passado fizeram sucesso no Caixa Alfama e este mês têm vários espectáculos marcados. Mas Rodrigo está ainda a gravar um disco a solo “Não é de fado marialva. Estou a gravar nas calmas. Já não sou um jovem e quero deixar um registo de coisas só minhas”, revelou.
“Já não há Ribatejo”
A frase é forte, mas Rodrigo Rodrigues Pereira é irredutível. É contra a forma como foi feita a divisão territorial portuguesa. “As províncias foram formadas com base na geologia do país: eram as regiões naturais, o que estava muito bem feito”. Apaixonado por Geografia, conhece bem o tema. “No resto da Europa, Alemanha, Itália, França e Espanha, as regiões naturais mantiveram-se, e em Portugal não. O Ribatejo foi extinto”, recorda. [Com as NUTS - Nomenclaturas de Unidades Territoriais para fins Estatísticos, delineadas pela UE, o que existe é: Médio Tejo, Alto Alentejo, Alentejo Central e Lezíria do Tejo]. Na prática, isto quer dizer que “existe, por exemplo, um vinho da Região de Lisboa, o que não faz sentido nenhum”, exemplifica. Reconhece que o Ribatejo se urbanizou - “como em todo o lado” - mas que é no interior que se encontra a sua essência: “Como aqui, em Fajarda. Estes lugares são pequenos oásis”.
Se a tourada acabar a culpa é dos empresários
Aficionado pela tauromaquia - mas à espanhola -, é muito crítico em relação à realidade portuguesa: “Se a tauromaquia acabar não são os anti-taurinos que vão acabar com ela, mas sim a gente de dentro”. Sem querer atiçar muito a fogueira - há vinho e queijo, o tinto acabou e já se pediram minis - enumera o que está errado: “Não existem organização, profissionalismo, sentido empresarial nem qualidade do espectáculo. E isto diz tudo”, afirma. E sabe a quem apontar o dedo: “Temos bons toureiros, não temos é bons empresários e essa é a maior lacuna do espectáculo em Portugal”.