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Sangue africano e Portugal no coração
Nelson Santos no Bairro de Arcena, com a mulher Alya e o enteado Keny.

Sangue africano e Portugal no coração

Em Vila Franca de Xira os filhos de África sentem-se portugueses de gema. “Ó preto, volta para a tua terra”, ouviu Wilson, durante um jogo de futebol. “Mas esta é a minha terra”, pensou. O jovem com raízes cabo-verdianas já nasceu em Portugal e adora o seu país. Em casa, quase já não se fala crioulo. A reportagem de O MIRANTE em dois bairros do concelho de Vila Franca de Xira onde vivem muitos africanos e seus descendentes demonstra que Portugal não tem cor.

O bairro social da Icesa, em Vialonga, e o bairro de Arcena, em Alverca, do mesmo cariz, sempre foram conotados como os bairros “dos africanos” - para não escrever a palavra que corre na boca de muitos moradores de Vila Franca de Xira e que poderia ser considerada racismo. É uma forma de catalogar os bairros, o que nem sequer é verdade. Existem muitas famílias portuguesas a viver nesses bairros, de cor negra, é certo, mas que são cidadãos portugueses.
No bairro da Icesa ouve-se, nas colunas de um carro antigo, uma música de rancho folclórico, e do outro lado da rua, no café, a batida é afro-house. As duas realidades misturam-se e confundem-se. “O bairro agora é só jovens, e todos eles nasceram aqui em Vila Franca de Xira”, diz uma das moradoras a
O MIRANTE. É aqui também que existe a Associação de Africanos de Vila Franca de Xira (ver caixa). Mas os miúdos, os que se assumem portugueses, estão nos cafés. Conversam sobre bola, namoradas ou sobre o futuro.
Wilson Veiga tem 19 anos e é jogador de futebol no União Atlético Povoense. Sonha ser jogador profissional, exibir as cores da Selecção Nacional do seu país, aquele que muitos lhe recusam atribuir por causa do seu tom de pele. “Às vezes, quando estou em campo, ouço: ‘Ó preto, volta para a tua terra’. Mas esta é a minha terra. Nasci português”, defende-se.
É verdade. Nasceu no Hospital de Vila Franca de Xira, apesar de ser descendente de cabo-verdianos. “Sinto-me um português de gema”, assume. Os três irmãos também nasceram em Portugal. A família mudou-se para Vialonga há mais de três décadas e em casa é raro Wilson falar crioulo. A História que conhece é a História do seu país: “Portugal”. Os pais são da Ilha da Praia, terra que Wilson já conheceu, mas onde não gostaria de viver.

O prato favorito é bacalhau com natas
Sentiu racismo quando era mais novo, agora garante que já se sabe defender e que nem liga. Namorou com raparigas brancas e negras e garante que nunca nenhum pai se opôs ao namoro por causa da cor da sua pele. Wilson fala sem sotaque. E é tímido. Concluiu o 12º ano e trabalha nos serviços dos CTT Expresso. Para o ano vai candidatar-se à universidade: quer ser educador de infância. Os pais apoiam os seus sonhos e a mãe faz várias vezes o seu prato favorito: engana-se, não é muamba, mas sim bacalhau com natas.
O seu clube do coração é o Benfica e gosta de passear no país onde nasceu: “Gosto muito dos monumentos”, revela. “Vou muitas vezes a Belém, aos Jerónimos”, confessa. Quanto a música, ouve de tudo, mas confessa que o hip-hop e o afro-house lhe enchem mais as medidas - influências do bairro, mas também da sonoridade que hoje marca quase todas as discotecas do país, vocacionadas para africanos ou não. Está na moda. Dançar funaná é que nunca aprendeu. “Sou pé de chumbo”, diz, a sorrir. E, como europeu que é, aponta o dedo a si mesmo nas diferenças que encontra entre os portugueses e os cabo-verdianos: “Em Cabo Verde as pessoas são mais sociáveis, mais alegres, aqui somos mais fechados”, resume.

“Sinto-me português”, diz Nelson, que tem dupla nacionalidade
Ao final da tarde de sábado, no Bairro de Arcena, em Alverca, só alguns cafés estão abertos. Há mulheres africanas nas ruas, vestidas com os trajes típicos das suas terras de origem, conversam sobre os miúdos - os filhos, hoje homens e pais de crianças que circulam pelas ruas do bairro de bicicleta. Como o enteado de Nelson Santos, Keny.
Nelson Santos tem 37 anos e dupla nacionalidade: é angolano e português. Chegou a Portugal com oito anos e veio apenas com o pai. “Tenho poucas memórias desse tempo, apenas que morávamos junto à Feira da Ladra, em Lisboa, e que os meninos da escola gozavam comigo por ser escuro”, recorda.
Nelson estudara em Luanda, em turmas com “brancos, negros, indianos e mulatos”. A diversidade, para Nelson, era normal. Em Portugal, há três décadas, um negro ainda era apontado na rua. À pergunta se se sente dividido, tal como no seu cartão de cidadão, responde rápido: “Não. Sinto-me português”.
Nunca mais voltou a Angola, apesar de lá viver uma irmã. Portugal é o país que traz no coração. O pai, ex-inspector da PJ em Angola, tentou encontrar trabalho na mesma área em Portugal, mas foi impossível. Acabou por trabalhar em armazéns e rapidamente se mudaram para o Bairro de Arcena, onde Nélson hoje vive com a sua segunda mulher - tem dois filhos de uma primeira relação, mas estes vivem no estrangeiro.

Uma guineense que não quer o filho a falar crioulo
Foi nas voltas da vida e do bairro que Nelson conheceu Alya Moreira, a guineense que recusa as suas raízes. “Ela também tem dupla nacionalidade, nasceu na Guiné e veio em criança para Portugal. Mas diz sempre que é portuguesa. Odeia alguns dos costumes dos guineenses e recusa-se a seguir as tradições”, conta Nelson. O casal está à espera de um filho e a mãe já avisou que o pai está proibido de lhe ensinar crioulo. Em casa só se fala português e a refeição mais repetida - agora ainda mais “defendida” pelos desejos de grávida - é o famoso bitoque: “Adoro batatas fritas”, confessa Alya.
“Não gosto de dizer que tenho raízes na Guiné porque não me revejo nos costumes, no machismo, na forma como falam alto em qualquer sitio público e como não respeitam a opinião dos outros. São muito tribais”, explica Alya, que trabalha numa agência bancária, em Lisboa. Nelson é funcionário numa empresa de montagem de peças de automóveis.
Nelson, mais sentimental, confessa que gosta de comida angolana, mas que quando existe um jogo entre a selecção portuguesa e a angolana, fica feliz quando Portugal vence. Alya, que já foi casada também com um angolano e tem um filho chamado Leokeny Ferreira - mas todos o tratam por Keny - não cedeu. Esta criança vai ter nome português: “Vai chamar-se Rafael”. E lá em casa, como se vive? “A minha casa é igual a qualquer outra casa de uma família portuguesa. Comemos bacalhau, falamos português e interessamo-nos pelo que se passa no nosso país”. Portugal não tem cor.

Wilson Veiga sentado à mesa de um dos cafés do bairro da Icesa.

Uma associação não só para africanos, mas para Vialonga

A Associação de Africanos do Concelho de Vila Franca de Xira tem morada no Bairro da Icesa, em Vialonga. Foi criada em 2014 e apoia a população oferecendo aconselhamento jurídico, financeiro e também social. Na prática, ajuda os moradores a tratarem de contas e IRS e em questões de imigração. Têm ainda grupos de Batuque; Taekwondo e de Jiu-Jitsu. Da associação faz parte ainda o grupo de jovens descendentes da Guiné-Bissau - os Badjuda dy Balur - e a entidade tem uma parceria com o Banco Alimentar, através da qual apoia 63 famílias de Vialonga. Na sede da associação existe ainda acesso livre à Internet para toda a população de Vialonga.

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