Uma história de amor com mais de 60 anos
Quando Fernando despe a farda de Provedor e é apenas o marido da Dona Gracinda. Nunca tinham namorado com ninguém quando se conheceram. Gracinda tinha vinte anos e Fernando vinte e dois. Casaram na igreja matriz da Chamusca a 29 de Dezembro e foram apanhar a camioneta para passarem a Lua de Mel em Lisboa. Voltaram antes da passagem de ano porque o dinheiro acabou. Festejaram 60 anos de casados o ano passado.
Fernando Barreto é Provedor da Santa Casa da Misericórdia da Chamusca há 26 anos. Parece muito tempo mas acaba por não ser nada quando comparado com os mais de 60 anos que já leva como marido de Gracinda Barreto. Um dia, daqui a muitos anos, o seu nome continuará associado à instituição mas para os seus dois filhos, os seus seis netos e os outros descendentes que virão, tanto ele como a esposa serão apenas um belo exemplo de uma longa história de amor.
O pai de Fernando Barreto era carpinteiro. Durante dois anos viveu com a esposa na Golegã e foi lá que lhe nasceu o filho mais velho, o primeiro de dois que o casal iria ter. “Nasci na Golegã por acaso. Foi em 16 de Novembro de 1931. A casa onde nasci ainda lá está, à entrada da vila. Depois os meus pais foram viver para o Pinheiro Grande. Tenho um irmão nascido em Setembro de 1933”.
É segunda-feira, 15 de Maio, pouco passa das três da tarde. A conversa decorre na sala de estar da casa onde o casal mora há 52 anos. Gracinda Barreto vai buscar fotografias dos filhos, dos genros e dos netos, enquanto vai falando de si.
“Eu nasci em 1933, no dia 2 de Fevereiro. Dia de Nossa Senhora das Candeias. Também nasci acidentalmente em Riachos. Os meus pais trabalhavam no campo e estavam a tomar conta de uma Quinta do Dr. Maldonado. Fui baptizada em Riachos e registaram-me em Torres Novas. Faz uma pausa e acrescenta numa espécie de homenagem aos progenitores. “Eu também trabalhei no campo até aos 33 anos”.
Quando Gracinda tinha vinte anos dançou com Fernando num baile e aceitou que ele fosse pedir autorização ao seu pai para a namorar, apesar dele a dançar “ser um autêntico “pé de chumbo”. Era uma Quinta-Feira Santa e muito provavelmente quem estava a tocar concertina era o artista popular de Alpiarça, de seu nome António Padeiro, mas a quem todos chamavam António Queijeiro por ter um negócio de venda de queijos.
Fernando Barreto não perdeu tempo e quando falou com o pai de Gracinda pediu-lhe logo para lá ir a casa no Domingo de Páscoa. “O meu pai nem dormiu”, conta Gracinda. “Como eu rejeitava todos os pretendentes que me apareciam ele estava convencido que eu nunca me iria casar”. No dia combinado lá estava o ansioso jovem com um pacotinho de amêndoas para lhe oferecer e com o coração a transbordar de amor e ansiedade.
Foi o primeiro namoro dos dois e o único até agora. No dia 29 de Dezembro do ano passado foi a festa dos 60 anos de casados a que compareceu meio mundo. Vinte ou trinta vezes mais pessoas do que as que estiveram no casamento “pobrezinho”, realizado pelo já falecido Padre Diogo, na Igreja Matriz da vila.
“A Lua-de-Mel foi em Lisboa. Saímos do casamento e foram-nos levar à camioneta das quatro. Voltámos no dia 31 à noite porque estivemos a fazer contas e o dinheiro já não dava para passarmos lá o fim de ano”, conta Fernando Barreto.
A mesa da sala começa a encher-se de molduras com fotografias da família. “Esta é a minha filha, a Maria João. Trabalha em Lisboa na Direcção Geral de Contribuições e Impostos. Dirige uma equipa de 80 ou 90 trabalhadores. Em Lisboa. Tem quatro filhos. Duas filhas já são formadas e estão a trabalhar. Vem todos os fins-de-semana à Chamusca. Este é o meu filho Fernando José. Tem dois filhos”, explica Gracinda Barreto.
Depois desfia o nome dos seis netos. “Helena Maria, Isabel Maria, António Maria, Teresa Maria, Constança Maria e José Pedro. São todos Maria em homenagem à Virgem Maria e o José é Pedro porque gostavam muito do S. Pedro”. Toda a família é católica.
“Só faltei a uma corrida de Quinta-Feira da Ascensão”
Com a Festa da Semana da Ascensão à porta, Gracinda Barreto faz questão de revelar a sua paixão pela tauromaquia e de explicar onde é que ela nasceu. “O meu pai era doido por touradas e levava-me sempre com ele. O gosto dele pelos touros e o facto de se referir muitas vezes às “crenças” dos animais valeram-lhe a alcunha de Tio crença. Eu, desde que comecei a ir em garotinha à corrida de Quinta-Feira de Ascensão só faltei a uma”, declara.
O casal acompanha a época tauromáquica e vai a muitas touradas nas mais diversas praças do país. E foi sempre assim desde que estão casados. Fernando Barreto mostra uma fotografia antiga em que ele e a esposa estão junto ao cavaleiro tauromáquico José Mestre Baptista, falecido em 1985, poucos meses antes de fazer 45 anos e ao seu apoderado de então. “Esta foto foi tirada aqui na Chamusca, em 1968, numa altura em que aqui veio o cirurgião Christian Barnard que tinha feito o primeiro transplante de coração dois anos antes”, explica.
“Estudei pouco tempo porque tinha muita inclinação para os negócios”
“Frequentei o Colégio Padre Fernando Eduardo Pereira aqui na Chamusca. Estudei só até ao 4º ano. Mais tarde até fiquei com o colégio. Ao princípio era eu, o padre Diogo e mais dois professores. Depois fiquei eu sozinho”, explica Fernando Barreto. A esposa acrescenta que o marido chegou a ter terreno e planta para fazer um colégio de raiz mas que o 25 de Abril e as alterações ocorridas também no sector do ensino o forçaram a abandonar a ideia.
Fernando Barreto retoma a narrativa sobre o seu percurso. “Comecei a trabalhar nas bombas de combustível da BP, tinha 15 anos e fui para lá para o escritório. Tive como mestre o senhor Francisco Cid que me ensinou contabilidade. Ele era Guarda Livros do Grémio da Lavoura mas trabalhava lá à noite. Dali fui para a Fábrica de Papel de Santa Maria de Ulme. Trabalhei lá trinta anos mas continuei nas bombas de combustível que tive em sociedade com o dono da fábrica, Eng.º Rosa Rodrigues e o dono do prédio, Sr. Hernâni Lopes da Costa”. Actualmente o casal mantem a empresa de combustíveis e distribuição de gás que é gerida pelo filho.
A esposa acrescenta que o marido até chegou a ter uma agência do totoloto e totobola. “Em sociedade com o barbeiro”, acrescenta Fernando Barreto. “Ele tinha que dar uma caução de 12.500 escudos à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e tinha medo de perder o dinheiro. Eu avancei e ficámos sócios”, explica.
Gracinda Barreto também não era mulher para ficar parada. Primeiro foi para gerente da fábrica de malhas que havia na Rua da Quintinha, ao pé do cinema. Mais tarde abriu a sua própria fábrica. Malhas Lezíria. O negócio corria bem mas com a chegada dos têxteis chineses começaram os problemas. Os clientes não vendiam e depois não pagavam à fábrica.
O golpe fatal ocorreu a 2 de Agosto de 2003 quando a fábrica ficou completamente destruída na sequência de um incêndio que devastou grande parte do concelho da Chamusca, provocando quatro mortos e milhares de euros de prejuízos. “Só ao fim de nove anos conseguimos chegar a acordo com a Seguradora. Perdemos muito dinheiro”, conta Gracinda Barreto.
Ao longo de uma vida longa e preenchida nem tudo é um mar de rosas. O incêndio da fábrica não foi o único revés do casal mas como tristezas não pagam dívidas, Fernando Barreto e a esposa Gracinda conduziram toda a conversa sempre pelo lado mais luminoso das suas memórias.
Já perto do final o Provedor da Santa Casa da Misericórdia da Chamusca fala da instituição que dirige para dizer que nunca hesitou em ajudar os outros, mesmo aqueles de quem se dizia que não mereciam ser ajudados, que com o passar da idade sente de forma mais intensa as desgraças do mundo e que sai da Misericórdia no final do actual mandato, em Dezembro de 2018. “Nunca me arrependi de ter ido para a Misericórdia”, afirma. A seu lado a esposa sorri e guarda para ela a última frase. “Ele nunca se arrependeu de ter ido para a Misericórdia. Eu é que me arrependi de o deixar ir”.