O encanto pela poesia não conhece idades
O VIII Encontro dos Poetas Populares no Núcleo Museológico de Alverca mostrou que não há vergonha nem medo do palco na hora de cada um declamar o que lhe vai na alma.
O Núcleo Museológico de Alverca voltou a ser palco de uma tarde cheia de poesia. O VIII Encontro dos Poetas Populares contou com a presença de frequentadores habituais da casa, de membros da comunidade cultural Palavra Cantada e até de estreantes que quiseram declamar algumas criações. Entre poetas, declamadores, família e outros acompanhantes, contaram-se perto de 40, e houve até quem tivesse direito a escrever os poemas e a vê-los lidos por outras pessoas a seu pedido.
Desta vez, o tema era “As Mulheres de Antigamente” e houve poemas para todos os gostos, sempre a enaltecer as características e as provações que as mães de outrora viveram, num tempo em que as liberdades eram condicionadas, as rotinas mais árduas e a paciência dos maridos muito menor. Foi este último ponto, aliás, o mais referido nos poemas da maioria dos presentes.
O mais jovem do grupo, António Serra, tem 11 anos e fala como gente grande. Foi por incentivo da madrinha, Maria Gomes, presidente da associação Palavra Cantada, com sede em Vila Franca de Xira, que começou a compor poemas. A inspiração encontra-a nas brincadeiras e no dia-a-dia e tem na leitura uma paixão: “Desde pequeno que leio muito bem. Na minha turma na escola, sou o que leio melhor”.
Também o irmão mais novo, Ivo Serra, de oito anos, começa a ter o bichinho do palco e embora ainda não componha, já lê os poemas escritos pelo irmão. Para a madrinha, Maria Gomes, é um gosto tê-los a seguir-lhe as passadas, ela que também escreve tanto poesia como contos, fábulas, histórias infantis. A presença constante de Maria, que escreve poesia há mais de 40 anos e já vai no sétimo livro publicado, influenciou a ‘queda’ dos pequenos para a poesia.
“Tudo dá para se tornar poesia”
Quem também se chegou à frente da plateia para declamar poesia e para que lhe cantassem os parabéns pelos 77 anos foi Maria Vitalina Loureiro: “Já é costume vir a estes encontros de poetas porque adoro poesia. Também escrevo poemas desde os 20 anos, mais ou menos, mas começou por ser a brincar. Inspiro-me em qualquer coisa: numa pessoa, numa coisa que aconteceu, tudo dá para se tornar poesia”.
Maria Vitalina confessa que “dá medo” declamar aquilo que escreve em frente a outras pessoas, mas há que fazer um esforço. “Hoje fui muito aplaudida aqui e toda a gente me beijou e me desejou os parabéns, fizeram-me chorar! Mas eu já sabia que isso ia acontecer porque sou muito chorona e muito sensível”. E reconhece que é preciso ter sensibilidade para se ser poeta. “Às vezes não gosto muito do que escrevo e vou atrás e escrevo outra vez. Outras vezes não me consigo inspirar e não escrevo. Mas quando me sai bem, gosto de partilhar!”.
Quem também não teve medo de apresentar os seus poemas, neste caso mais eróticos, foi Luís Lamancha, 52 anos. O primeiro era dedicado à primeira mulher fumadora e o segundo à prostituição no antigamente. Cheios de versos erráticos e com o à-vontade que a idade mais jovem de Luís lhe confere, os poemas prenderam as atenções dos presentes e valeram aplausos no final, mostrando que nestes encontros não há tempo nem espaço para timidez e vergonha.
O poema instantâneo de José Serafim
Para José Serafim, de 90 anos, residente em Alverca, improvisar poesia é um dom natural. É um dos poetas habituais da casa, conhecido de todos os presentes, e também não pôde faltar ao encontro. “É bom sair de casa para não enferrujar. E como ainda tenho uma cabecinha boa, aproveito e vou escrevendo”. Os netos e a mulher, apesar de estar de muletas, fizeram questão de o acompanhar. E José deixou a O MIRANTE este poema que compôs de imediato:
“Tenho 90 natais, 90 janeiros
Se chegar a 2 de novembro, faço-os inteiros
Fez 72 anos que a minha aldeia deixei
A família, o gado, o cão e a fome
Que eu nunca esquecerei
Deixei os montes e vales e aquelas ervas daninhas
Deixei a silva nas paredes que me dava umas amorazinhas
Deixei o frio e o gelo que de Inverno fazia
Pisei o chão descalço que ao pôr os pés ele rangia
E aquela passarada que eu gostava de ouvir cantar
Lá no monte com o gado e o cão é que me faziam alegrar”