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Se há fogo não há tempo para dormir nem forças para lidar com o sentimento de impotência

Se há fogo não há tempo para dormir nem forças para lidar com o sentimento de impotência

Autarcas dos concelhos afectados pelos incêndios falam dos dias de aflição, das fraquezas e de como lidam com as situações

O telefonema acaba com o presidente da Câmara do Sardoal, Miguel Borges, a chorar. O autarca recordava a O MIRANTE os momentos de “horror” vividos nos últimos dias, e nas últimas noites, em que os incêndios não deram tréguas, nem a bombeiros, nem às populações dos concelhos de Sardoal, Mação, Abrantes e Tomar, que tudo fizeram na defesa das suas localidades. A vida dos autarcas nestes dias de incêndios são uma roda viva, extenuantes, um mar de aflições em que não há tempo para pensar na campanha eleitoral, nem sequer, muitas vezes, na própria família. Já para não falar no sono adiado a toque de cafés ou adrenalina. Como é que os autarcas da região vivem os dias e noites de aflição provocada pelos fogos?
O sentimento é de impotência perante uma força devastadora. “São vários dias e várias noites que tentamos combater este inimigo que não tem rosto”, conta Miguel Borges com um nó na garganta. O descanso dos autarcas é feito nos pequenos intervalos em que as coisas acalmam. “Uma hora por noite mas assim que estamos a começar a descansar há logo um telefonema e normalmente nunca é com boas novidades, é sempre mais destruição”, relata Miguel Borges. Se o autarca do Sardoal ainda conseguia passar pelas brasas por pouco tempo que fosse, a sua colega de Abrantes não. Durante os incêndios no concelho, Maria do Céu Albuquerque não dormiu “cinco dias e cinco noites”. O que se notava pelo estado de exaustão e pela voz cansada.

Dez minutos para almoçar no aniversário do filho
Se há muitos momentos maus qual é o pior, aquele em que o sentimento de impotência ataca as forças que restam? Para a presidente de Abrantes o pior momento que viveu não foi um mas “foram todos, ao longo destes dias”. E a maior sensação de impotência foi “olhar para a cara de desespero dos bombeiros, ver as pessoas a sofrer e não conseguir fazer nada. Foi aflitivo. Felizmente não tivemos vítimas mortais”, conta Maria do Céu Albuquerque. O autarca de Mação viveu o pior dia dos incêndios e provavelmente da sua vida na quarta feira, 16 de Agosto, no mesmo dia em que o filho fez anos. A aflição só foi aliviada, dentro do possível, numa curtíssima paragem para comer apressadamente com o filho mais velho, que completava 14 anos. “Ainda conseguimos fazer um almoço de aniversário que durou 10 minutos”, lembra Vasco Estrela.
O incêndio que deflagrou em Aldeia do Mato, Abrantes, no dia 8 de Agosto, que chegou a ser combatido por mais de sete centenas de operacionais, devastou grande parte do concelho e obrigou à evacuação de várias localidades. As chamas chegaram a estar às portas da cidade, já dentro do perímetro urbano. Para Maria do Céu Albuquerque “o fogo teve origem criminosa”. “Temos a clara noção de que há aqui uma clara tentativa de provocar mais danos. “Temos receio de que outras situações possam acontecer e comprometer o trabalho que foi feito durante estes dias no concelho de Abrantes”, desabafa a autarca.
O que mais preocupa os presidentes de câmara, os responsáveis máximos pela protecção civil nos seus concelhos, é a vida das pessoas e os seus bens. E a autarca de Tomar sentiu esse drama à frente dos olhos, no incêndio que deflagrou na tarde de sábado, 12 de Agosto, na localidade de Carvalhal, União de Freguesias da Serra e Junceira, Tomar, e que obrigou à retirada de 17 pessoas do local, que tiveram de ser transportadas de barco pela albufeira do Castelo do Bode para o lar de Alverangel. “O pior momento daquele dia, foi quando uma casa ardeu ao pé de mim. Foi tudo muito rápido”, lembra Anabela Freitas. “A prioridade passou por defender, para além das vidas humanas, as casas que se encontravam na linha de fogo”.

Quando os meios não são suficientes
A zona, banhada pela albufeira de Castelo do Bode, “tem muitas casas de segunda habitação, pessoas que vêm passar férias, e muito dispersas e isoladas, foi muito violento e de propagação muito rápida, e os meios ao ataque inicial não foram os suficientes, até pela dispersão de meios aéreos e humanos em outras ocorrências na região”, explicou.
Quando se sente que faltam meios, que os bombeiros não são super-homens, que os autarcas não têm varinha de condão para resolverem as situações, o que é que se pode dizer? “O pior é que nem sei se existem meios. Foram mais de 50 localidades afectadas e em muitas delas não esteve ninguém da Protecção Civil, para além da população. Obviamente que a culpa não é dos bombeiros mas há uma inoperância total neste tipo de incêndios”, afirma Vasco Estrela, um homem que depois desta tragédia se considera amargurado, impotente, angustiado e triste.

Quando se está aflito liga-se para o presidente
Um presidente de câmara num cenário destes é a pessoa a quem toda a gente recorrer ou quer recorrer. Não há mãos a medir com tantos telefonemas. Que o diga o autarca de Mação que viu “mais de 90 por cento” do seu concelho ser consumido pelas chamas. Vasco Estrela, que esteve quatro noites seguidas sem dormir, atende centenas de telefonemas de munícipes aflitos, desesperados. O presidente conhece a maioria daqueles que lhe ligavam. “Conheço-os, sei dos seus problemas, das suas dificuldades e ninguém gosta de ver os seus a sofrer”. Por estas terras do interior quase toda a gente tem o número de telemóvel do presidente e às vezes uma palavra ajuda a acalmar as pessoas.
“São momentos de grande aflição em que realmente estamos sempre com o coração nas mãos. É uma tristeza enorme vermos a nossa floresta, os bens que as pessoas têm, todo este pulmão da zona centro de Portugal ser devastado, mas só nos podemos ir abaixo amanhã. E se houver fogo, só depois de amanhã. É sempre amanhã, quando tudo passar”. É este o espírito de Miguel Borges depois de o pior já ter passado. Depois de minutos, horas e dias a encontrar forças para lidar com as situações.”Claro que somos humanos e temos as nossas fraquezas. É normal que isso aconteça a quem anda há várias noites sem descansar. Nestes momentos vamos buscar forças onde nem sequer sabíamos que existiam”. Ouve-se silêncio na chamada telefónica e não foi por causa das dificuldades de rede de telemóvel com que o autarca do Sardoal se confronta no seu gabinete da câmara. Passam dez segundos sem dizer palavra e a fraqueza vem ao de cima... O presidente começa a chorar....

A ajuda da família

A famiília do presidente da Câmara do Sardoal, Miguel Borges, acompanha-o nos bons e maus momentos. Nos dias dos incêndios não foi diferente. “A minha mulher e os meus filhos estão comigo na logística a ajudar nas refeições. É uma forma de eles se sentirem úteis e assim não estão em casa sem perceber muito bem o que se passa”, explica o autarca.
Para Vasco Estrela, o autarca de Mação, “a família compreende estes momentos, porque ela própria foi afectada pelo fogo. Nesta altura concentraram-se todos na minha casa”. O presidente fala com os familiares quando pode, porque quando soa o alarme a população liga é para o autarca, que lá por ser presidente não tem todo o poder. “Apesar de sermos os responsáveis máximos pela protecção civil não temos o poder de enviar meios para o local”.

Se há fogo não há tempo para dormir nem forças para lidar com o sentimento de impotência

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